TRABALHO: AS CASAS DE DETENÇÃO PROMOVEM UM ECOSSISTEMA DE TRABALHO SAUDÁVEL?

Escrito por: Marco Ribeiro Henriques.

O trabalho é uma das componentes mais essenciais da vida humana. Perante a lei, o trabalho consiste num direito que em alguns países têm uma salvaguarda na própria Lei Fundamental – a Constituição. É um direito que reveste uma enorme importância, sendo mesmo considerado por alguns autores como pressuposto do próprio direito à vida, enquanto direito à sobrevivência. Tecnicamente, o direito ao trabalho consiste no direito à obtenção de um emprego ou à participação numa atividade profissional, sendo este diálogo entre o direito e o dever que possibilita aos indivíduos que possam reivindicar uma provisão do Estado quando não se vêem satisfeitas as garantias desses direitos por razões de saúde, do mercado de trabalho ou dos níveis de desemprego no mercado de trabalho.

A verdade é que o termo “trabalho” é um conceito que varia consoante o momento histórico, o contexto social e o espaço. Se o trabalho já foi considerado primordial na vida do indivíduo e na construção da sua identidade, este papel foi-se alterando, perdendo-se cada vez mais esta centralidade. Transportando este conceito para os sistemas de justiça, assistimos a uma assimetria contextual e histórica da própria função do trabalho nos percursos das pessoas privadas de liberdade durante os respectivos períodos de cumprimento de penas. Por outro lado, será necessário atender à história instrumentalizada do trabalho com finalidade política de domínio de massas e propaganda. Com o tempo e o caminho para as sociedades mais comprometidas com a sustentabilidade dos direitos humanos, o trabalho foi-se tornando mais instável, mas também precário e escasso. O trabalho é uma atividade que permite às pessoas se apoiarem a si próprias, os outros e as necessidades de uma comunidade mais vasta. Demasiadas vezes, os sistemas prisionais tiram esta componente crucial da vida das pessoas ou reduzem-se ao simples trabalho manual. Thomas Edison disse que “a oportunidade é perdida pela maioria das pessoas porque está vestida de macacão e parece-se com trabalho”. Se retirarmos a oportunidade às pessoas de ganharem a vida por si mesmos e pelas suas famílias, tiramos-lhes uma parte da sua humanidade.

O trabalho, para as pessoas a cumprir penas de privação de liberdade, constitui muitas vezes um direito a ser evocado pelo próprio. Sendo um direito, a pessoa poderá optar por exercer ou não o mesmo. Mas, e se o trabalho for parte obrigatória do cumprimento de pena, ainda que salvaguardadas as proteções (inclusive por tratados internacionais), como podemos continuar a afirmar o trabalho como um direito das pessoas privadas da sua liberdade? O Estado tem o dever de defender um nível mais elevado e estável de trabalho. Nesta afirmação, poderíamos substituir “defender” por “impor”? Não, claro que não! Seria uma missão inatingível. Aqui chegados, surge-nos outra questão: como podem os sistemas de justiça promover a disponibilidade de trabalho para todas as pessoas privadas de liberdade? Sem emprego, qualquer cidadão encontrará dificuldades para prover todas as suas necessidades. Como tal, a sua vida torna-se inconstante e sem sentido. Estas situações são, muitas vezes, a conjugação ideal para enveredar pela resolução criminal. Sabemos que o trabalho influencia grande parte da vida dos indivíduos. O trabalho consegue alterar a personalidade, e é a partir dele que se estabelecem laços efetivos, rotinas e experiências. Aprendizagens como estas que suportam a realidade de uma efetiva reinserção social das pessoas que cometeram crimes. É também por tudo isto que, desde tempos imemoriais, o trabalho está presente nos sistemas de justiça.

Como podem as casas de detenção proporcionar um ecossistema saudável no qual as pessoas possam contribuir com o seu tempo e competências para a sociedade? Empresas sociais como a Reshape Ceramics são um dos exemplos de como é possível tornar esta organização realidade. O trabalho começa com um processo de formação na área profissional de cerâmica, seguindo-se um estágio e por fim a contratação do indivíduo quando ainda privado da sua liberdade. Com a alteração da situação jurídica da pessoa privada de liberdade e reentrada na situação de liberdade, a pessoa pode optar por continuar a trabalhar no projeto social no ateliê já em contexto de liberdade.

Na maioria dos países do Conselho da Europa, o trabalho das pessoas privadas de liberdade está regulamentado e, entre estes exemplos, a maioria encara este trabalho como obrigatório. Sabemos que este trabalho é muitas vezes facilitado pelos sistemas de justiça, mas – e sobretudo – por empresas privadas que estabelecem protocolos com os sistemas de justiça. Mas quais serão os limites éticos e de justiça para este trabalho prestado por pessoas condenadas? Sabemos que há uma preocupação em clarificar que o trabalho exercido pelas pessoas condenadas, mesmo em países nos quais o trabalho prisional possa ser obrigatório, não é considerado como trabalho forçado. A este propósito, a Convenção n.º 29 da Organização Internacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório refere que não é considerado como trabalho forçado “todo o trabalho ou serviço exigido a um indivíduo como consequência de condenação proveniente de decisão judicial, com a condição de que esse trabalho ou serviço seja executado sob a vigilância e o controlo das autoridades públicas e de que o mesmo indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas morais privadas”.

No mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no seu artigo 8.º, indica que não é considerado trabalho forçado ou obrigatório o exigido de um indivíduo que é detido em virtude de uma decisão judicial legítima. Esta clarificação apresenta-se como relevante, pois muitas destas pessoas preferem estar a trabalhar a permanecer fechadas nas suas celas e, tendo em conta que os serviços de justiça o sabem, tal poderia dar origem a situações de exploração. Conhecemos alguns exemplos de trabalho em privação de liberdade saudáveis e justos, mas ainda muito poucos. Como por exemplo a Delta em Portugal, uma companhia de cafés que investiu na criação de oficinas de manutenção de máquinas de café dentro das prisões e estabelece relações de trabalho com as pessoas privadas de liberdade assente em pressupostos de legalidade análogos a idêntica situação em liberdade garantindo que as pessoas trabalhadoras tenham as mesmas condições de escolha, contrato e retribuição que teriam na mesma situação em liberdade.

Fato é que não basta disponibilizar trabalho, muitas vezes é preciso formar estas pessoas para a atividade. A formação é essencial não só para o trabalho mas – particularmente – para a reinserção social das pessoas condenadas. No caso português no início do século XX o sistema de justiça estava muito voltado para o trabalho como instrumento de reintegração e são conhecidas normas e vários projetos que naquela altura já possibilitaram às pessoas, uma vez em liberdade, pudessem continuar a integrar brigadas de trabalho até arranjarem emprego mantendo um esquema de folgas rotativas para procurar emprego fora do espectro e estigma da pena. Este conhecimento acumulado, um pouco à semelhança de outros países, hoje não tem aplicação. No essencial, passados estes anos, a política pública não mudou – o trabalho continua a ser central – mas a investigação permite afirmar que a sua função foi sendo reformada com foco na formação e não tanto na subsistência de relações jurídicas de trabalho. Esta é uma questão determinante já que sabemos que a fronteira entre a determinação do que é “trabalho” e o que significa estar “ocupado” é muito ténue e pode ser muito perigosa do ponto de vista dos direitos das pessoas humanas. Foucault escreveu que “o trabalho deve ser uma das peças essenciais da transformação e socialização progressiva das pessoas privadas de liberdade. O trabalho (prisional) não deve ser considerado como um complemento e, por assim dizer, como uma agravação da pena, mas sim como uma suavização cuja privação seria totalmente possível”.

Acreditamos a este propósito que em contextos de Casas de Detenção, as pessoas podem trabalhar dentro ou fora do ambiente da casa em contextos de aprendizagem e formação, mas também em atividades produtivas no mercado de trabalho. Ao se munir a pessoa de competências para exercer uma atividade profissional há fundadas esperanças de que, uma vez em liberdade, esta consiga obter um trabalho, o que será fundamental para a sua reintegração na sociedade.

Fotografia de: RESCALED.

Este artigo foi originalmente escrito em inglês no âmbito do projeto WISH-EU – Working in Small Scale Detention Houses in Europe.

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Marco Ribeiro Henriques

Diretor Executivo da RESHAPE.
Professor Assistente Convidado no Instituto Politécnico de Viseu
e no Instituto Superior Miguel Torga.