COMO REINTEGRAR O INJUSTAMENTE CONDENADO A PENA DE PRISÃO?

Escrito por: Ana Teresa Carneiro.

 A pena de prisão e o sistema prisional constituem matéria que é objeto clássico de provectas discussões interdisciplinares, mas que, nem por isso, é atualmente menos controversa. Assiste-se, contemporaneamente, a uma coesa discussão, a nível internacional, sobre a essência da pena de prisão, sobretudo no que se entrecruza com as finalidades que lhe são atribuídas pelas legislações modernas, mormente as de reintegração.

A (in)evitabilidade da pena de prisão e a sua natureza de ultima ratio, a sua comprovada (in)eficácia, as respetivas alternativas e possibilidades de substituição, o modo de execução e as formas do seu cumprimento, os programas adjuvantes às finalidades específicas desta pena, e muitos outros temas continuam, efetivamente, a configurar um enorme desafio à doutrina, ao legislador e aos operadores da justiça. Não esquecendo ainda (e com demasiada relevância neste contexto) toda a estratégia que se impõe no pós-cumprimento da pena, na recente e justa liberdade, tão almejada como desafiante. Pois que é aqui, como comprovam os estudos, que a reintegração é testada, é posta à prova, máxime quando a generalidade das portas se fecham com o peso da força do preconceito e da estigmatização.

Fica assim clara, nesta brevíssima exposição, a complexidade do roteiro que se inicia com a condenação de um individuo em pena de prisão até à sua efetiva reintegração (ou não). Caminho que obviamente assenta no pressuposto de que a condenação foi justa, isto é, de que tudo se opera com a finalidade de reintegrar quem cometeu um crime, pelo qual lhe foi aplicada pena de prisão, determinada na sua medida, entre outros fatores, pelas exigências de prevenção especial positiva. Portanto, as preocupações que aqui se levantam focam-se no mero cumprimento da pena, mas não questionando a pena propriamente dita, ou, se quisermos, aceitando a justiça da condenação e partindo dessa base acolhida como certa e justa.

Mas pensemos agora noutra hipótese: haverá algo a dizer sobre a reintegração do indivíduo condenado a pena de prisão, quando esta decisão foi tomada num quadro de erro da justiça? Por outras palavras, o que questionar sobre a reintegração do injustamente condenado a pena de prisão?

Ainda que saibamos que, felizmente, esta questão não se coloca na generalidade das situações, e considerando a expressão estatística quase insignificante destes casos, eles existem, pelo que devem também ser ponderados. Ora, na verdade, o direito processual penal consagra uma série de mecanismos não apenas preventivos, mas também corretivos do erro de justiça, o que diminui, em termos bastante garantísticos, a margem de possibilidade de casos em que a condenação a pena de prisão vem a comprovar-se injusta, seja no decorrer dum recurso ordinário (onde as consequências, apesar de graves, são menos nefastas) ou, numa derradeira via, através do recurso extraordinário de revisão (o que prevê, entre inúmeros cenários, a possibilidade de cumprimento duma pena injusta de longa duração).

Pensemos, então, numa situação como a que acabámos de referir – e, pela sua maior gravidade, tomemos por exemplo a hipótese de alguém que injustamente cumpriu uma pena de prisão de longa duração, imposta por condenação injusta transitada em julgado, e que logrou – por via daquele recurso extraordinário – ver declarada a sua inocência.

Problema primeiro: como “compensar” esta pessoa pelo erro de que foi vítima?

Ora, a lei prevê um sistema de restituição do arguido à situação jurídica anterior à condenação injusta, que passa pela afixação e publicitação da sentença absolutória (uma tentativa bem intencionada do legislador de purgar o nome e a honra de quem foi injustamente condenado) e pela atribuição de indemnização pelos danos sofridos (paga pelo Estado), com a restituição de todas as quantias relativas a custas e multas que o condenado tenha suportado no respetivo processo [obviamente muito haveria aqui a questionar sobre este regime e, sobretudo, sobre a (im)possibilidade de quantificar a liberdade perdida].

Problema segundo (aquele que nos trouxe a esta reflexão): como se posiciona o problema da reintegração num caso com estas características?

Vejamos, uma vez declarada a inocência do injustamente condenado confirmam-se inexistentes as exigências de prevenção que estiveram na base da determinação daquela pena concreta, injustamente cumprida e agora anulada. O mesmo é dizer que resta afirmada a desnecessidade de reintegração porque, na verdade, o condenado – não tendo cometido o crime que lhe foi imputado – não se desviou daquilo que o ordenamento jurídico dele esperava. Portanto, não se pode ressocializar ou reintegrar alguém que nunca se “dessocializou” ou afastou dos valores jurídico-comunitários.

Todavia, há que invocar aqui uma realidade esquecida. Se aquela pessoa iniciou a execução da pena de prisão a que foi condenado – ainda que sem reais necessidades de reintegração – o mesmo não se verificará certamente no momento da cessação do cumprimento da pena. É que o mesmo sistema que possibilitou que alguém cumprisse uma pena de prisão injusta é exatamente o mesmo que, na mais das vezes, vai criar necessidades, agora reais, de reintegração que não existiam até então. Dito de outra forma, o injustificado desenraizamento social, laboral e familiar do injustamente condenado e os tão consabidos efeitos criminógenos e estigmatizadores da pena de prisão vão, agora sim, criar exigências de prevenção especial positiva naquele condenado. Exigências a que nem a afirmação judicial da inocência, nem a indemnização por privação injusta da liberdade darão, na maior parte dos casos, resposta.

Pelo que, em jeito de conclusão, se invoca aqui, para reflexão, a questão que deu título a este pequeno texto: como reintegrar o injustamente condenado a pena de prisão?

Fotografia via: Unsplash.

Ana Teresa Carneiro

Licenciada em Direito pela FDUCP,
Mestre em Direito Judiciário pela EDUM
e Doutoranda na Faculdade de Direito
da Universidade de Santiago de Compostela.
Trabalha sobretudo a área do erro judiciário
e do recurso extraordinário de revisão.