ENTRE GRADES: QUAL SERÁ O PESO DE UM CONCEITO NO PROCESSO DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL?

Escrito por: Ana Guerreiro.

New York will no longer use ‘inmate’ for people in prison[1]

A notícia chega-nos do outro lado do oceano e numa altura em que o mundo assiste com alguma perplexidade a vários fenómenos que expectam sérias mudanças sociais: a ascensão da extrema-direita nos principais focos políticos mundiais, a continuidade do confronto entre a Rússia e a Ucrânia, e uma consequente crise económica com repercussões gravíssimas para toda a população.

Retoricamente a questão que se coloca é: que importância terá a mudança de um conceito numa época em que emergem outras preocupações?! Não retiro legitimidade a quem assim pensa – e com razão, atrever-me-ia até a dizer.  Ainda assim, quero acreditar que, com toda a consternação que estas situações nos provocam, notícias tão simples como a que é o mote para esta crónica, nos fazem ter esperança naquilo que é o futuro próximo. Porque, como bem nos disse já o célebre filósofo alemão, Arthur Schopenhauer, “a tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todos vêem”.

Começo, por isso, por clarificar o conceito de inmate que, em português, significa prisioneiro/a ou recluso/a – nome dado a qualquer pessoa presa ou recluída. Na verdade, o que a notícia nos revela é que o conceito de inmate será substituído por incarcerated person. À primeira vista – dirão os/as mais críticos/as – a diferença é nenhuma. Mas as palavras têm o seu peso e, se refletirmos bem, o ónus colocado nelas advém, essencialmente, das estereotipias construídas em redor do conceito. A utilização do conceito “recluso/a” ou “prisioneiro/a”, reflete uma profunda desumanização dos indivíduos, sendo-lhes colocado um rótulo advindo de um só período (à partida) da sua vida e que, consequentemente, tem implicações no processo de ressocialização,  reinserção e reintegração social. Ao invés, a proposta é passar-se a utilizar a denominação de pessoa em situação de reclusão, o que confere um tratamento mais humanizado dos indivíduos e dá força à ideia de que a reclusão é periódica e não um estado da pessoa humana. Encontra-se aqui em causa o princípio da normalização do tratamento prisional, tão bem elencado nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos[2], que destacam o valor e a dignidade do ser humano e a necessidade de minimizar as diferenças entre a vida durante a detenção e a vida em liberdade (Regra 5).

Quantas vezes não ouvimos ou lemos relatos de pessoas que, pouco tempo depois de serem libertadas, voltam à prática criminal, admitindo que preferem estar “lá dentro” do que em meio livre? Não será este discurso um indicador do – tanto – que ainda nos falta fazer neste processo de reintegrar as pessoas que, seja por que razões forem, enveredaram pela prática criminal? Parecem unânimes as dificuldades existentes em torno deste ponto de vista e que contraria as tão tradicionais elocuções de que os indivíduos só voltam para meio prisional, e passo a citar com uma certa dose de ironia, “porque é mais fácil viver à conta dos outros, ter comida e roupa lavada e não ter que trabalhar para pagar contas”. Na verdade, não é de esperar outra coisa por parte de quem está genericamente enquadrado nas normativas sociais e morais.

Por estes motivos, muito mais do que apontar o dedo, é necessário refletir criticamente, conhecer a génese e as motivações para a prática criminal e para a reincidência. E talvez isto passe também pela divulgação das taxas desta última, o que permitirá aos/às profissionais trabalhar de forma mais direcionada. Não que este seja um pensamento generalista, porque cada individuo tem unicidade e mostra-se erróneo fazer este trabalho comparativo e generalizador. Mas mais errado é apontar o dedo sem conhecer ou passar por determinadas experiências de vida, nomeadamente a nada desejada experiência da reclusão.

Mostra-se, por isso, difícil terminar esta reflexão sem recorrer ao célebre pensamento de Nelson Mandela: “Diz-se que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro das suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pela forma como trata seus cidadãos mais elevados, mas como trata os mais rebaixados.”.

REFERÊNCIAS

Fotografia via Getty Images.

Ana Guerreiro

Professora Auxiliar na Universidade da Maia e Professora Auxiliar Convidada na FDUP.

Doutorada em Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP).

Diretora da Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento da Universidade da Maia (UICCC.UMaia).