O QUE LEVAMOS DO PRISON INSIGHTS’ 22

Escrito por: Joana Soares. Fotografia de Madalena Ventura, para o Jornal Crónico.
O dia 11 de maio é daqueles que vai para a coleção dos dias que não se esquecem. Depois de meses de preparação para trazermos de volta ao presencial o evento que procura promover a humanização do sistema prisional e partilhar boas práticas que diminuam a distância entre “eles” e “nós”, a sensação é de muita gratidão por ter feito parte disto e por ter aprendido tanto em tão pouco tempo – mesmo com a tentação constante de atrasar o relógio para saborear ao pormenor cada segundo do Prison Insights ’22, co-organizado pela RESHAPE e pelo Instituto Miguel Galvão Teles.
Mentiria se não dissesse que para mim tudo começou no dia anterior ao evento, quando visitei pela primeira vez uma prisão, para acompanhar uma reportagem da SIC sobre o trabalho que a Reshape Ceramics faz dentro e fora das prisões e, sem estarmos à espera, assistimos a duas libertações. No rescaldo desta quarta edição, deixamos dez pontos que mais nos marcaram para irmos recordando sempre que a memória nos falhar, ou sempre quisermos voltar a estes momentos que deixarão, certamente, saudade.
1. TEMOS DE FALAR SOBRE AS PRISÕES.
Sara Hyde aproveitou a primeira intervenção do dia para nos desafiar a pensar sobre quem está nas prisões e se essas pessoas são efetivamente tão diferentes de nós. “Há uma ideia sobre as prisões que promete manter-nos seguros. Que nos diz que as prisões estão à margem da sociedade (…) Mas as prisões fazem parte da sociedade e não as podemos ignorar como se não fossem um problema nosso”. Tal como sugeriu na sua TEDEx Talk com o mesmo nome, “We need to talk about prisons”, é preciso pormo-nos no lugar uns dos outros e pensarmos “E se fossemos nós? E se ficássemos marcados pelo maior erro que já cometemos, para o resto das nossas vidas?”.
É preciso reforçar a importância do que nos trouxe ao Prison Insights ‘22, para ouvir, falar e desmistificar, porque “eles” podíamos ser “nós”. É preciso falar sobre saúde mental nas prisões, investir em formação adequada para quem trabalha com reclusos e questionar até que ponto a severidade de determinadas penas e as condições das infraestruturas existentes contribuem positiva ou negativamente para o efeito a que se destinam. É por isso que, criar momentos destes é tão importante, como referiu Tiago Fontez no artigo “Humanização em Cadeia”, para o Jornal Crónico, “o Prison Insights é algo que deve continuar a repetir-se, não só pela perspectiva pessoal, mas acima de tudo pela necessidade colectiva de colocar os problemas criminais em debate, formulando novas soluções judiciais e sociais que contribuam significativamente para resolução de problemas, como é o caso da reinserção”.
2. O QUE NOS APAIXONA É A COMPLEXIDADE PARADOXAL QUE EXISTE NISTO.
No discurso de encerramento, Duarte Fonseca (RESHAPE) confessou-nos que o mais o apaixona é a dicotomia entre a simplicidade do sistema e a complexidade de pôr em prática soluções que implicam passos que não dependem só de nós. “Sabemos que se trata de um sistema muito simples. Sabemos quem são as pessoas, onde estão, durante quanto tempo (com exceção dos preventivos que estão à espera) e em teoria seria simples pensarmos em formas de as reintegrar”.
Por outro lado, e como referiu Lénia Mestrinho, falta-nos a ponte com os decisores políticos. “Depende verdadeiramente de todos, todos temos responsabilidade: o poder político (local, central, europeu), o poder administrativo e de gestão (do sistema prisional e do sistema de reinserção), os ministérios (da segurança social, da saúde e da educação), o staff prisional (os diretores, os técnicos e os guardas), as associações e os voluntários, as empresas, os financiadores, os beneficiários, as universidades, os estudantes, a academia e o conhecimento” (Duarte Fonseca).
3. HÁ MUITO TALENTO DENTRO DAS PRISÕES E PODEMOS DESCOBRI-LO COM PROPÓSITO.
Foram várias as histórias que ouvimos sobre pessoas que se descobriram talentos durante e depois do tempo em que estiveram presas. Mas como nos alertou Baz Dreisinger (Prison-to-College Pipeline Program & Writing on the Wall), devemos constantemente fazer o exercício de pensar se estamos realmente a ajudar aquelas pessoas ou se não estamos a cair no risco do voyeurismo, sem olhar para a essência do problema ou nos envolvermos na solução. Até porque, como referiu Sabrina Puddu (KU Leuven), nem todas as pessoas que estão presas ou em casas de detenção se envolvem ou participam da mesma forma.
Não é de todo o caso do programa de rádio prisional norueguês RøverRadion, que Mina Hadjian conduz na prisão de Halden (Oslo), onde é possível fazer a ponte entre a comunidade prisional e a sociedade civil, mostrar solidariedade para com a comunidade gay dentro das prisões e manter em contacto pessoas que estão e que já estiveram presas, diminuindo efetivamente esta distância, que se provou ainda mais desafiante em pandemia.
Quando a locutora de rádio com 25 anos de experiência, que conduzia um canal que hoje tem cerca de 60 a 70.000 ouvintes entrou na cela de Simen, ele não fazia ideia que lhe bastariam algumas idas à rádio para começar a verbalizar as suas ideias e criar iniciativas dentro das prisões. Mina acreditou no potencial de Simen e ele encontrou a sua voz, tal como Mandy, ambos uma inspiração para quem se encontra dentro e fora das prisões.
4. SAIR EM LIBERDADE TAMBÉM É DIFÍCIL, NÃO SE COMEÇA NA CASA DA PARTIDA.
Quando Mina perguntou a Simen como era sair em liberdade, ele não nos respondeu com o conto de fadas que esperávamos ouvir. Respondeu-nos de forma franca e honesta que, muitas vezes, sair implicava recomeçar com um saldo negativo, em várias frentes ao mesmo tempo. Até quem saísse com uma perspetiva de trabalho, poderia ter dificuldade em encontrar casa, em restabelecer relações.
Quando visitei o EP de Caxias, um dos guardas prisionais contou-nos que já tinha conhecido ex-reclusos que não queriam sair e ir para uma instituição. Seria mais uma adaptação e eles já estavam habituados à segurança e rotinas daquela prisão. Muitas vezes não pensamos para onde “voltam” estas pessoas. Se voltam para um ambiente saudável e estruturado. Se têm sequer para onde voltar.
5. UM TRABALHO ESTÁVEL PODE DIMINUIR A REINCIDÊNCIA.
Se é verdade que a reinserção na sociedade pode ser extremamente desafiante, também sabemos que o processo pode começar do lado de dentro e que os programas e iniciativas de capacitação são boas formas de utilizar o tempo de quem se vê privado de liberdade. Este foi o tema do painel “Work in Prisons”, moderado por Jacob Hill (Offploy), que nos explicou que no Reino Unido, a taxa de reincidência de 61% poderia baixar 9% quando se encontrava forma de garantir trabalho estável para quem já esteve preso. Al Crisci (The Clink) e Max Dubiel (Redemption Roasters) fazem parte dos empregadores que ajudam a diminuir esta percentagem de reincidência.
Max deu-nos uma chapada de luva branca ao contar a história da primeira pessoa que a Redemption Roasters empregou, depois de sair em liberdade e que voltou a reincidir. Dirigindo-se ao público da forma mais honesta do mundo, perguntou ”será que falhámos?”, para responder “Claro que não. Assim que ele saiu, voltámos a integrá-lo. Por isso, enquanto conseguirmos estar aqui, a ajudar esta pessoa e a dar-lhe emprego, as vezes que forem necessárias, estaremos a quebrar o ciclo da reincidência e a fazer realmente o nosso trabalho.”
6. NA ARTE SOMOS TODOS IGUAIS. OS OUTROS SOMOS NÓS E NÓS SOMOS OS OUTROS.
Se Paulo Lameiro (Musicalmente) nos lembrava que muitas vezes não são “eles” que mais precisam de ajuda, mas todos nós; na performance de MJ Paranzino (Liberty Choir) aprendemos que qualquer pessoa pode aproximar-se do outro, apresentar-se, dar-lhe um abraço ou decorar vários nomes de seguida. Aprendemos que podemos dançar, fazer coros, reproduzir instrumentos e voltar ao refrão – em que as diferenças se dissipam e cantamos todos juntos, numa só voz.
Nas palavras do Exmo. Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, Dr. Jorge Costa, a arte tem um poder inimaginável para diminuir a fome cultural. É preciso alimentar outros tipos de fome e levar mais literatura às prisões. Ao longo deste dia, foi unânime entre os vários oradores que “não somos nós que mudamos os outros”. Estamos lá para ajudar, para levar para dentro recursos que permitam aproximarmo-nos destas pessoas com empatia, ajudá-las a encontrar a sua voz (como Simen e Mandy encontraram na prisão) e a seguir os seus projetos de vida, quando em liberdade.
7. O APOIO PSICOLÓGICO É INDISPENSÁVEL. PARA TODOS OS ENVOLVIDOS.
Quando assisti às duas libertações houve uma imagem que não consegui esquecer. O misto de emoções nos olhos de quem fica, quando assiste orgulhosamente à libertação das pessoas com quem passou os últimos anos e criou laços, e ao mesmo tempo a sensação de ainda não ter chegado a sua vez. A saúde mental nas prisões é um tema sobre o qual também temos de falar, principalmente pelos valores alarmantes de suicídio. É preciso estender este apoio a todos os envolvidos que estão diariamente nas prisões, o staff prisional, os guardas e os técnicos. Porque, mais uma vez, depende de todos e um passo em falso pode ter um impacto considerável no processo de reabilitação e normalização de alguém.
Neste Prison Insights ‘22, Mandy Ogunmokun (Treasures Foundation) quebrou o tabu do trauma quando nos confessou que, por mais força de vontade que alguém tenha, ninguém se vê livre do seu passado num abrir e fechar de olhos. A mente prega constantemente partidas e nunca se sabe quando os flashbacks voltam, sem sobreaviso. Há quem durma calçado ou não seja capaz de tomar banho sem que a casa esteja vazia, durante meses. Na Treasures Foundation, Mandy faz tudo por tudo para garantir apoio psicológico até ao dia em que estas pessoas consigam finalmente olhar além do seu passado sombrio e descobrir os tesouros escondidos que têm dentro.
8. AS CASAS SÃO O FUTURO. TEMOS DE TOMAR CONTA DAS PESSOAS, ALÉM DA PUNIÇÃO.
A história de Mandy também nos ensinou que a prisão pode realmente dar alguma estrutura a quem não a teve, pelos mais variados motivos. Mas à semelhança de Simen, Mandy também se deparou com todos os desafios que vêm com a libertação. A reinserção, a normalização, a ressocialização.
Koen Geens, ex-Ministro da Justiça da Bélgica, conversou com Gonçalo Noronha Andrade (RESCALED) sobre o modelo das casas de transição e detenção, previamente abordadas pelo Gonçalo neste artigo de opinião do ECO, “Prisões: small is beautiful“. Na Bélgica já há legislação que permite a existência de casas de transição para os últimos 18 meses de cumprimento de pena e há também um modelo alternativo, que o RESCALED Movement defende, para penas de curta duração, em que as pessoas que estão presas podem viver em pequenas casas de detenção, com vista à diferenciação e integração na comunidade. Além disto, nas palavras de Koen, “Não podemos esquecer um problema atual, chamado danos prisionais. Se as pessoas passarem muito tempo presas, a punição pode deixá-las piores do que estavam antes. As casas são uma alternativa, mas não são a solução para o porquê de as pessoas virem parar à prisão e para a sobrelotação das prisões. É preciso pensar noutras formas de prevenir a prisão e de cuidar das pessoas, ao invés de apenas as punir.”
9. O NETWORKING E AS EMPRESAS SÃO PARTES IMPRESCINDÍVEIS DA EQUAÇÃO.
Embora o Estado tenha um papel determinante para abrir caminho às soluções que diminuam a reincidência, as prisões dizem respeito a todos, mais não seja, porque são pagas com os nossos impostos (Sara Hyde) e não podem, nem devem ser privatizadas (Koen Geens). Sabendo que todos somos responsáveis, é preciso incluir na equação quem pode ajudar a quebrar ciclos de reincidência, partilhar boas práticas e promover a adopção de políticas públicas: o terceiro setor e as empresas.
Sobre o primeiro, Duarte Fonseca recordou um momento do Jantar de Speakers, no dia anterior, que resume a importância do networking. “Estavam reunidas cerca de 30 pessoas de várias organizações de geografias e contextos completamente diferentes, que conseguiram encontrar, em conjunto, soluções para praticamente todos os problemas do sistema prisional. E isso é muito tentador.”
No que diz respeito às empresas, é preciso mais iniciativa, mais votos de confiança e segundas, terceiras, quartas oportunidades. Al Crisci (HMPSS) contou-nos que quando perguntou a um recluso porque é que voltavam a reincidir depois do programa de capacitação de cozinha dentro das prisões, a resposta que obteve foi que “ninguém queria empregar um ex-recluso”. Os casos de sucesso da Redemption Roasters e do HMPSS provam o contrário, o primeiro graduate tornou-se gestor de uma loja; e um dos ex-reclusos acabou por não ser chef ou empregado de mesa mas convenceu a entidade e dar-lhe um casting e hoje é um brilhante ator. Por isso apelamos às empresas que nos estão a ler, que pensem como podem ajudar as prisões, enquadrando-as na sua quota parte de responsabilidade social, alinhada com a sua missão. Se no programa de Baz Dreisinger (Prison-to-College) as pessoas saem da prisão com uma vaga na universidade, porque não podem sair com um emprego?
10. TEMOS DE IR MAIS ÀS PRISÕES, APROXIMAR A COMUNIDADE DAS PESSOAS E AS PESSOAS DA COMUNIDADE.
De manhã, MJ Paranzino (Liberty Choir) confessava que às vezes dizia à Ginny Dougary (Liberty Choir) “nunca viverei o suficiente para trazer todas as pessoas à prisão”, quando se referia à importância de aproximar a comunidade das pessoas e as pessoas da comunidade. Porque precisamos todos uns dos outros. E basta pegar na mão de alguém e partilhar conhecimentos para perdermos o medo do desconhecido e ganharmos alguma compreensão sobre o outro. No mesmo painel “Houses or Prisons”, moderado por Helene de Vos (RESCALED), Johan Lothe (Wayback) falou-nos da importância da confiança para a reinserção e para desenvolver o sentimento de pertença a uma comunidade.
No discurso de encerramento Duarte Fonseca (RESHAPE) desafiou todos os presentes para irem mais às prisões e o Dr. Jorge Costa (SEAJ) lembrou-nos que do outro lado do muro está um cidadão como nós. Em notas finais, referiu que “Se a lei nos diz que a comunidade deve contribuir para realização das finalidades das penas, então não podemos prescindir da colaboração com a sociedade civil”. E reforçou a necessidade do envolvimento de todos na resolução de um problema que diz respeito à sociedade e não apenas a alguns ”Se é verdade que na aplicação da pena de prisão é quem a sofre que mais carece da cooperação de entidades públicas e ONG’s, esta também é essencial na execução de penas não privativas de liberdade. Pois é na execução dessas penas que reside a chave para um curso que todos pretendemos, um recurso cada vez menor à prisão”.
Há certamente muito mais a dizer do que estas dez aprendizagens que, para já, levamos de um evento tão rico em insights, ideias e reflexões. Resta-nos agradecer a todos os que estiveram connosco neste dia, incluindo o Instituto Miguel Galvão Teles, que nos acompanha desde a primeira edição, o Alto Patrocínio do Presidente da República, o Movimento Europeu RESCALED, a Morais Leitão, a Fundação Calouste Gulbenkian, o Grupo Pestana, o Marriott Lisboa, o Jornal ECO Advocatus, o Jornal Expresso, a Casa do Impacto da SCML, o Jornal Crónico, o Jornal Pontivírgula e as Universidades, patrocinadores e parceiros sem os quais nada disto seria possível.
Brevemente poderão encontrar a gravação completa do evento no nosso canal de Youtube e, entretanto, ir revivendo este dia nas seguintes entrevistas e reportagens da SIC (Reshape Ceramics e Prison Insights), do Expresso (Painel “Art in Prisons”), do Público (Casa de Braga), do Diário de Notícias (Casas de Transição) aqui e aqui (Paulo Lameiro, Ópera na Prisão) e do Jornal Crónico aqui (Humanização em Cadeia) e aqui (reportagem fotográfica Prison Insights). Esperamos por todos numa próxima edição!

Joana Soares
Comunicação & Fundraising
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