NARRATIVAS EM TORNO DE UMA MORTE SILENCIOSA [1]

 

Escrito por: Susana Costa e Filipe Santos.

O caso da morte de Marcos, em janeiro de 2016, é relevante e exemplar em relação a outros eventos tipificados como homicídio: o arguido ser um recluso, o evento ter ocorrido dentro de um EP e por ter colocado dúvidas de se tratar de um homicídio, de um suicídio ou mesmo morte natural. Este caso não foi contabilizado nas estatísticas oficiais como homicídio. Esta morte, longe da ribalta noticiosa, foi investigada pelo PROJECTO INOCÊNCIA, e ilustra a convergência manifesta nas práticas exercidas pelos diferentes atores e instituições que redundaram na condenação do único suspeito, o companheiro de cela – António, e vem demonstrar como instituições e atores tomam decisões que constroem e delimitam o inquérito criminal.

Marcos encontrava-se detido na ala G do EP. Sofria de tuberculose, hepatite e HIV, e tomava metadona. A relação entre António e Marcos é descrita como pacífica e cordial. No dia 12 de janeiro de 2016, às 20:30h, a enfermeira do EP fez a distribuição da medicação aos reclusos. No dia seguinte, após o primeiro conto, António diz que chamou por Marcos e este não respondeu. Foi tomar o pequeno-almoço, regressou à cela e voltou a sair para almoçar. Estranhando o silêncio de Marcos e permanecer deitado na mesma posição, António diz ter alertado o guarda prisional que terá respondido “deixa-o estar, está a dormir”. Antes de sair para jantar, diz ter alertado novamente o guarda. Este, constatando que Marcos não respondia, chama o Diretor e o médico do EP, que declarou o óbito às 19:05h.

A PSP registou a ocorrência como uma morte sem assistência [2]. A Direção do EP contacta o INMLCF que envia ao local uma médica-legista não tendo observado “lesões traumáticas recentes que pudessem ser causa adequada de morte, nomeadamente ao nível do pescoço”. Segundo ela, tratar-se-ia de morte natural. Não obstante, solicita inspeção judiciária. A PJ reporta que “o cenário já havia sido alterado” e que o corpo encontrado pelo guarda em decúbito ventral no beliche, encontrava-se agora em decúbito dorsal no chão da cela. Não é registado por quem, ou porque motivo foi o corpo retirado da cama. A PJ, não encontrando indícios de crime, não desenvolveu qualquer diligência. Apenas inquiriu António e os guardas prisionais.

Do mesmo modo, o relatório interno elaborado pelo EP concluiu como plausível que a morte se tenha devido às múltiplas doenças infeciosas de que Marcos padecia. A versão do guarda, porém, difere da de António, mencionando que este em momento algum alertou para a situação. Na versão credibilizada pelo EP foi o guarda que, estranhando que Marcos permanecesse na cama, abriu a cela quando António se ausentou para jantar e encontrou Marcos já sem vida. No seu depoimento à PJ, o guarda sugeriu que, a ter ocorrido algo ilícito, só podia ter sido por ação de António.

Quando foi conhecido o relatório de autópsia, embora não fossem visíveis marcas externas, foram detetadas fraturas com infiltração sanguínea no osso hióide e na cartilagem tiroideia – sinal que Marcos estava vivo quando ocorreram. O relatório conclui que Marcos morreu de forma “violenta” devido a uma “asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço”. Porém, é igualmente referido que médico-legalmente não é possível estabelecer o diagnóstico diferencial entre homicídio, acidente ou suicídio. Com o resultado da autópsia e o depoimento do guarda, o que até aí se trataria aparentemente de uma morte natural, converte-se numa investigação de homicídio e António é constituído arguido.

Sobressai deste caso o modo como o próprio EP desenvolve o inquérito interno, cujo objetivo não aparenta ser indagar o que sucedeu e porquê, mas tão só exonerar a instituição e os seus colaboradores de toda e qualquer responsabilidade. Nesse inquérito, o depoimento do Guarda é avaliado como “credível e coerente”, referindo também que “não se vislumbra eventual existência de omissão ou negligência dos Serviços (…)”. A narrativa produzida pelo EP tende assim a revelar uma postura de defesa institucional (Goffman, 1961; Katz, 1979), protegendo os guardas e o próprio EP, ocultando as suas debilidades [3]. Assim, se foi dada voz aos guardas e à enfermeira, o mesmo não aconteceu relativamente à audição de reclusos que poderiam auxiliar a contar a história da cela 17. É invisibilizada a própria vítima, o seu estado de saúde, a falta de apoio familiar e económico, e as alegadas visitas a outras alas conotadas com tráfico de estupefacientes.

A acusação argumenta que Marcos morreu durante a noite (entre as 18:50h do dia 12 e as 08:05h do dia 13), quando as celas estavam fechadas e que António se dirigiu a Marcos e agarrou-lhe o pescoço com as mãos, com força, apertando-o até este asfixiar. Desta forma, é considerada a hora do último conto do dia 12 e não a hora a que a enfermeira administrou a medicação a ambos.

Em julgamento, o relatório de autópsia e o depoimento da perita acabam por se tornar peças centrais da acusação, para sustentar dois elementos cruciais: a hora e a causa da morte. Ou seja, que a morte ocorreu de forma violenta mas sem deixar marcas, e que só António poderia ter cometido o crime porque as celas estavam fechadas durante a noite. O uso de expressões evasivas por parte da perita, características de uma postura de neutralidade institucional ou “cultura de bolha” (Costa e Santos, 2019), levam o tribunal a extrapolar as respostas que se adequam à narrativa previamente construída.

Se, por exemplo, relativamente ao intervalo de hora de morte a perita refere no depoimento que “é o mais plausível supor” a partir dos sinais evidenciados no cadáver, o juiz converte a possibilidade em certeza jurídica: “o tribunal [ficou] plenamente convencido que a morte (…) ocorreu entre as 19H00 do dia 12.1.2016 e as 08H00 do dia 13.1.2016”. Do mesmo modo, enquanto o juiz diz que “o relatório é peremptório em dizer que a causa da morte foi ‘asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço’”, a perita em tribunal esclarece, remetendo para o relatório de autópsia, dizendo que “eu apenas me limitei a por ’compressão extrínseca do pescoço’”. Quanto aos livores, quando o juiz diz: “o que me está a dizer é que, necessariamente, os livores fixos que constatou levam-nos a [concluir] que a morte deve ter ocorrido entre as 7h da noite anterior até às 8h da manhã desse dia”, a perita responde: É o mais plausível supor”.

No que se refere à prova documental, não foi possível aferir a que horas foram feitos os contos, por quem, ou a hora a que foi distribuída a medicação, o que poderia ser decisivo para confirmar se Marcos estaria vivo às 20h30. Tal podia alterar a hora provável de morte e, eventualmente, pondo em causa toda a narrativa.

Não obstante, o acórdão de sentença reproduz a acusação e dá como facto provado que António dirigiu-se ao ofendido Marcos (…) e agarrou-lhe o pescoço com as mãos, com força, apertando-o até este asfixiar”. Não se apurando quando, nem como, nem porquê, o tribunal, respaldando-se no relatório pericial, recorre à “presunção judicial” e às “regras da experiência” para preencher as eventuais lacunas evidenciárias:

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (…) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinadas pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros.

Numa presumida morte sem assistência por não haver sinais (nem na cela, nem no cadáver) que indiciassem crime, a perícia médico-legal, sem recurso aos critérios para aferir a hora de morte que o próprio INMLCF determina, viria a encontrar os sinais de uma morte “violenta”, ocorrida durante a noite, legitimando os atos e decisões posteriores. Num edifício legal presumivelmente neutro, as instituições concorrem para o apuramento da verdade material, buscando conhecimento e suporte pericial mútuo. No entanto, pode suceder que a verdade material não seja mais que a verdade possível e conveniente. Se outras vozes tivessem sido ouvidas, que outras verdades, mesmo (in)convenientes, poderiam ter sido reveladas?

NOTAS

[1] Este texto insere-se no âmbito do Projeto Inocência que foi criado em 2020 com o apoio de uma Bolsa de Investigação Jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian. Os autores tiveram acesso ao processo judicial enquanto membros da equipa do Projeto Inocência. Fazem parte do Projeto: Ana Patrícia Silva, Beatriz Pena, Cláudia Marques Santos, Filipe Santos, Inês Fajardo Silva, Isabel Duarte, Leonor Caldeira, Letícia Carvalho, Lisleine Uchôa do Lago, Paulo Pena e Susana Costa. https://projetoinocencia.org/

[2] De acordo com a Lei n.º 115/2009, “havendo indício de morte violenta ou de causa desconhecida, preserva-se o local da ocorrência e informam-se imediatamente os órgãos de polícia criminal, o Ministério Público e as entidades de saúde competentes…” (n.º 4 do art.º 36.º do Código da Execução das Penas e da Medidas Privativas da Liberdade, Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro).

[3] Veja-se, por exemplo, as notícias: Guardas prisionais e reclusos pouco seguros na cadeia; Morte de reclusos: Van Dunem obriga prisões a informar sempre a PJ

REFERÊNCIAS

Costa, Susana; Santos, Filipe (2019), The social life of forensic evidence and the epistemic sub-cultures in an inquisitorial justice system: Analysis of Saltão case, Science and Justice, Elsevier. 59(5), 471–479.

Goffman, Erving (1961), Asylums. Essays on the social situations of mental patients and other inmates, Anchor Books (ed.) New York.

Katz, Jack (1979), Concerted ignorance: The social construction of cover-up, Journal of Contemporary Ethnography, 8(3), 295–316.

Fotografia de Liz Vo, via Unsplash.

Susana Costa

Socióloga e Investigadora Auxiliar do

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES).

Membro da Direção do Projecto Inocência.

Sociólogo e Investigador do

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES).

Membro do Projecto Inocência.

Projeto Inocência