GENET, LADRÃO E ANJO
UM ENSAIO SOBRE MARGINALIDADE, ESPERANÇA E LIBERDADE

Escrito por: Rute Coimbra Dionísio.
Saint Genet, conforme Sartre o designou[1], nasceu em 1910, em Paris. Descendente ilegítimo, de mãe prostituta, foi destinado ao abandono, acabando por ser acusado de roubo pela primeira vez aos 10 anos. Filho de um crime maior, permaneceu parte da infância num reformatório. Ainda não era ladrão quando a inocência lhe foi roubada.
Numa longa viagem pela marginalidade dos bairros pobres, submerso na devassidão e criminalidade, Genet perdeu perpetuamente a liberdade que nunca teve.
Foi durante a permanência na prisão que escreveu e publicou vários livros, impulsionadores da sua libertação.
O Diário do Ladrão, obra cuja reflexão aqui se convoca, obriga-nos a uma discussão profunda sobre marginalidade, destruição, liberdade e transformação. Jean Genet, soldado, mendigo, ladrão, é também um anjo caído das letras, protagonista numa história que merece ser contada e que queremos contar.
A sua obra, biográfica e catártica, ilustra muito mais do que a própria vida. É um retrato de uma época, de um contexto e de um Homem sem rumo capaz de transformar a destruição e o ódio em superação.
Na pele do autor, vivemos um contexto marcado pela fome, pobreza, miséria e criminalidade. O Diário do Ladrão ilustra uma luta pela sobrevivência, um conflito interno e existencial, marcado pela estética do vício e pela subversão da moral.
Cada página, palavra e letra são uma provocação. É uma história que não é nossa, mas podia ser. Há alguma coisa do protagonista em nós. Talvez seja a incerteza, a solidão, a nostalgia ou o medo. Talvez seja o desejo de liberdade num mundo que nos determina, a vontade de pertencer, ser e alcançar.
Engana-se quem pensa que esta é uma história insuperável ou que o autor é vítima de um destino fatalmente traçado, peão de uma vida que não escolheu nem quis.
Genet reclama para si a atitude. E, sem assumir, consegue ilustrar poeticamente uma certa capacidade de conversão do mal no bem, do infortúnio no sucesso. Transforma uma erva daninha numa flor. Um homem sem esperança numa inspiração.
“O uniforme dos forçados é às riscas rosas e brancas. Se, comandado pelo meu coração o universo em que me comprazo, o escolho, tenho pelo menos o poder de nele descobrir os inúmeros sentidos que quero: existe portanto uma relação estreita entre as flores e os forçados. A fragilidade, a delicadeza das primeiras são da mesma natureza que a brutal insensibilidade dos outros. Se tiver de representar um forçado – ou um criminoso –, enfeitá-lo-ei de tantas flores que ele próprio ao desaparecer debaixo delas se tornará outra, gigante, nova.”[2]
Voz incontornável da estética marginal, Genet fez nascer do ladrão o anjo. Do vagabundo, o poeta. Do prostituto, o dramaturgo.
É resultado das escolhas dos outros mas também das suas. No Diário do Ladrão afirma a liberdade e responsabilidade, reclama para si um resultado derivado da autonomia e consciência.
É isto que devemos tirar de uma história crua, de um mundo nem sempre justo, e de um contexto muitas vezes desfavorável. O que a obra nos ensina, sem querer ensinar, é que somos capazes de converter o pior em melhor. O feio em belo. O destino traçado numa oportunidade para agir e escolher.
Ensina-nos também a empatia. A aceitação. A capacidade de perceber que o mundo não é preto e branco, está antes cheio de tons cinzentos. Que a culpa e o juízo de censura, erguidos na incerteza do que o outro é e viveu, requerem ponderação.
“Este livro não quer ser, prosseguindo no céu o seu trajeto solitário, uma obra de arte, objeto desligado de um autor e do mundo. A minha vida passada eu podia dizê-la num outro tom, com outras palavras. (…) sobre a pobreza e o crime punido poisei o dedo, mais pesadamente, e por várias vezes. É rumo a eles que irei. (…) E somente do ponto de vista de uma moral mais banal não seria lógico que este livro arrastasse o meu corpo e me atraísse à prisão – não, preciso ainda, segundo um procedimento rápido comandado pelos vossos costumes; mas por uma fatalidade que contém, que pus nele, e que, como eu o quis, me conserve como testemunha, campo de experiência, prova dos noves da sua virtude e da minha responsabilidade?”[3]
A obra de Genet encerra uma discussão sobre a oportunidade, nascida da construção de um novo sentido e fundamento para a liberdade.
Este ensaio não constitui mera sugestão de leitura mas antes uma reflexão e um convite a refletir.
É um diálogo aberto aos anjos e ladrões deste mundo, que encontram no agora a possibilidade de transformar o mau no bom, o feio no belo, imortalizando a sua história para a eternidade, sendo protagonistas do próprio destino.
Com as minhas palavras, tentando ter voz no palco que é a minha vida, no Diário onde anseio por um mundo justo onde ninguém volta à prisão, confesso o desejo de um dia conseguir “enfeitar-te de tantas flores que tu próprio ao desaparecer debaixo delas te tornarás outra, gigante, nova”.
REFERÊNCIAS
[1] SARTRE, Jean-Paul, Saint Genet, Comédien et Martyr, 1952
[2] GENET, Jean, Diário do Ladrão, Minotauro, 2022, p. 9
[3] GENET, Jean, Diário do Ladrão, Minotauro, 2022, pp. 275-276
Entrevista a Jean Genet, BBC Arena, 1985, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Cn7LWdmdyTU.
Image: Jean Genet, Alberto Giacometti, c. 1954

Rute Coimbra Dionísio
Jurista, Licenciada em Direito
e Mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais
na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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