VÍTIMAS PRECOCES, COM A VIDA TODA PARA SOFREREM AS CONSEQUÊNCIAS

Escrito por: João Pedro Gaspar.
Uma das especificidades de quem cresce em regime de acolhimento é ver-se privado de dois Direitos fundamentais: o Direito a crescer na família e o Direito que, por não estar presente (seja por negligência, abuso ou alguma forma de mau trato…), levou à sua retirada e consequente residencialização/institucionalização.
Parece paradoxal imaginarmos que quem mais deveria proteger a vulnerabilidade própria da infância possa ser responsável pelos maus tratos e, talvez por isso, seja consensual assumir que se tratam de vítimas precoces (da família e/ou da sociedade).
Ao contrário das famosas despedidas de solteiro em Las Vegas, a infância não é um compartimento fechado. Ainda bem, pois só assim nos podemos recordar, ao longo da vida, dos divertidos passeios em família, dos sabores da comida da avó, das brincadeiras com os vizinhos… Mas, infelizmente, não são apenas as boas memórias que nos acompanham e nos ajudam a formar a personalidade ou os valores que praticamos na adultez. As experiências adversas vivenciadas na infância tendem a deixar marcas profundas no nosso autoconhecimento, na forma como vemos o outro e no nosso lugar no mundo, além de baixa auto-confiança, desconfiança exacerbada e tantas outras questões do foro emocional e psicológico. Sabe-se, até, que algumas doenças relacionadas com a visão, a artrite, a diabetes ou mesmo oncológicas têm maior prevalência em adultos que em crianças vivenciaram várias experiências traumáticas. Ou seja, não se trata apenas de maior propensão para a depressão, ideações suicidas, dependências e outras questões do foro mental, mas da própria esperança média de vida, que poderá ser afetada, fruto das adversidades vivenciadas em criança. Resumindo, o que se passa na infância, não fica na infância, daí estas vítimas terem a vida toda para sofrerem as consequências.
Em Portugal não temos qualquer estudo que nos permita compreender as trajetórias de pós-acolhimento. No entanto, a única entidade em contexto nacional que se dedica a apoiar jovens com historial de acolhimento – Plataforma PAJE – tem consciência de quantos jovens visita em estabelecimentos prisionais por todo o país, apercebendo-se que, na esmagadora maioria dos casos, são a única visita que recebem ao longo dos tempos. Também não temos dados que permitam avaliar quantos ficam em condição de “sem abrigo”, quantos são profissionais do sexo ou quantos sofrem vitimização (violência doméstica, tráfico de seres humanos ou outras formas), mas temos consciência do número de pessoas que já recorreram a nós por sofrerem horrores com a solidão, por não conseguirem resposta para os problemas de saúde mental, pela dificuldade em conseguir emprego ou por falta de orientação/aconselhamento.
A sociedade tem alguma facilidade em julgar e condenar adultos que tomam decisões erradas, mas não tem a mesma facilidade em reconhecer que ser criança não significa ter infância. Alguns jovens adultos que não receberam afeto, não criaram vínculos e não tiveram modelos ou adultos de referência, têm um leque muito menor de opções e necessitam de uma resiliência extra, pois o comprometimento cognitivo, os danos emocionais e até, em algumas situações, o transtorno de personalidade podem ser co-responsáveis pelas decisões erradas que condicionam as suas vidas.
Não será de estranhar que as condenações judiciais sejam apenas uma das consequências destas “vidas adiadas” que desde cedo conheceram sofrimento, abandono, violência, abusos. Também não será de estranhar que os serviços prisionais e os tribunais de execução de penas entrem em contacto com a PAJE, pois necessitam de uma morada ou de uma referência “cá fora” para os reclusos que nunca tiveram retaguarda familiar.
Fica uma mensagem de esperança, pois a discriminação positiva de quem cresceu acolhido relativamente a questões como a saúde mental, o acesso à habitação e à inserção profissional começam a ser consensuais entre a opinião pública e os profissionais, sendo já discutidos entre a PAJE e os decisores políticos.
Tal como tentamos passar aos jovens que deixam o acolhimento, certamente, todos podemos acreditar que o destino pode destinar, mas a decisão é minha!
REFERÊNCIAS
[1] Gaspar, J.P., Gaspar, M.F., Ventura, A. & Francisco, I. (2021) A Importância do Trabalho nos Construtos dos Jovens com Historial de Acolhimento Residencial in Alcoforado, L. Barbosa, M. & Costa, A. Educação e Formação de Jovens e Adultos em Diferentes Tempos e Espaços de Vida (pp 201 – 213). Minerva Coimbra. 10.48552/9zhg-be23
[2] Gaspar, J. P., Gaspar, M. F. & Alcoforado, J.L. (2021) A importância da orientação vocacional no acolhimento residencial (pp 113-127). In Dias-Trindade, S.; Cordeiro, A.; Festas, M.; Alcoforado, L. (orgs.). Políticas e dinâmicas educativas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
[3] Gaspar, J.P., Alcoforado, J., Pereira, D. & Santos, E. (2021) O Papel dos Cuidadores de Crianças e Jovens em Risco, em Contexto Escolar. Revista Conhecimento On Line, Ano XIII Vol. 1 (pp. 112-126) Universidade Feevale, Rio Grande do Sul, Brasil https://doi.org/10.25112/rco.v1i0.2389
[4] Pimentel, F., Antão, J., Gomes, J., Homem, M., Gaspar, F., Gaspar, J.P., Rodrigues, S., Cunha, A., Semedo, C. (2020). Recomendações nacionais: processo de autonomia em jovens com experiência de acolhimento. OUTogether – Promoting Children’s Autonomy on Alternative Care. APDES. Retrievied from: https://outogether.org/wp-content/uploads/2020/08/Transnational-Recommendations_compressed-1.pdf
[5] Montenegro, E. & Gaspar, J. P. (2020). Serviço. In Academia de Líderes Ubuntu (Ed.) Pilares do Método UBUNTU (pp. 137-157). Lisboa: IPAV – ImPress. http://livro.academialideresubuntu.org/
[6] Gaspar, J.P., Rodrigues, S. & Gil, C. (2019) Conceito de Criança e seus Direitos: Implicações para o Sistema de Proteção Infantil. In Pereira, T., Oliveira, G. & Coltro, A. Cuidado e cidadania: desafios e possibilidades (pp.231-240). Rio de Janeiro: Editora GZ.
[7] Serrote, F. Gaspar, J.P. & Gaspar, M.F. (2019) A importância da vinculação de crianças e jovens em acolhimento residencial, no sucesso da intervenção com intencionalidade reparadora. In Pocinho, R., Carrana, P. et al (Coords Envelhecimento como perspetiva futura – Livro de atas do Ageing Congress (pp.275-286) 2019. Thomson Reuters
[8] Gaspar, J.P., Gaspar, M.F., Melo, J.D., Santos, S. (2019) Jovens adultos que viveram acolhidos: autonomização desafiante. Revista Multidisciplinar. Vol1 (1) (pp. 89-101). Faro DOI: https://doi.org/10.23882/MJ1903 ISSN: 2184-5492
Fotografia de Lina Trochez, via Unsplash.

João Pedro Gaspar
Docente e Investigador nas Universidades
de Coimbra, Algarve e PUC (Rio de Janeiro)
Supervisor e Presidente da Plataforma PAJE.
Comentários