INIMPUTABILIDADE E MEDIDAS DE SEGURANÇA

Escrito por: Filipe Santos.
A inimputabilidade e a imposição de medidas de segurança por razão de anomalia psíquica afigura-se um objeto complexo, quer do ponto de vista da lei, quer da medicina. O conceito de culpabilidade penal pressupõe que se constate uma relação psicológica entre o agente e a sua conduta. Havendo indícios para a ausência de capacidade para aquela relação é solicitada uma perícia psiquiátrica com quesitos baseados nos critérios de inimputabilidade.
No artigo 20.º do Código Penal Português, um indivíduo inimputável, excluindo por razão de idade, é aquele que “por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.” Assim, para a determinação de inimputabilidade concorrem dois pressupostos: o biopsicológico e o normativo. Para efeito da perícia psiquiátrica importa também o exercício de uma prognose de risco. Isto é, verificando-se que existe anomalia psíquica e que, sob os efeitos desta, foi cometido um ilícito tipificado como crime, importa avaliar a possibilidade de que o indivíduo venha a cometer novos crimes.
Se, por via de uma perícia psiquiátrica, se determinar que não deve ser imputada responsabilidade pelo crime, não há lugar a uma condenação. Porém, o indivíduo deverá ser colocado sob uma medida de segurança. Nesta perspetiva, não só não se pode imputar culpa porque o indivíduo não tem capacidade para aferir a ilicitude da sua conduta ou, sabendo que é ilícita, não pôde agir de forma diversa. Consequentemente, nem a imposição de uma pena seria dissuasora, justa, ou adjuvante à sua ressocialização.
Classificar um indivíduo como inimputável pode colocá-lo numa teia difícil de escapar. Sobre os indivíduos inimputáveis recai o duplo estigma de ter cometido atos tipificados como crime e de sofrer de doença mental. Por si só, os potenciais efeitos estigmatizantes podem impor desafios a uma eventual reintegração na sociedade.
Importa, no entanto, salientar que no domínio do direito a inimputabilidade, conforme definida no n.º 1 do art.º 20.º, acaba por representar uma minoria das decisões, sendo mais os casos de imputabilidade diminuída (n.º 2 do art.º 20.º). Isto é, quando se verifica a anomalia psíquica, mas o indivíduo demonstra capacidade para reconhecer a ilicitude do ato, mesmo sendo incapaz de agir de forma diferente. Dentro deste critério poder-se-iam incluir indivíduos cujo diagnóstico psiquiátrico os poderia colocar no espectro dos distúrbios de personalidade.
Em Portugal, recentes reformas legislativas têm vindo a reconhecer a especial vulnerabilidade desta população, visando a progressiva transição das clínicas psiquiátricas em meio prisional para alas forenses em hospitais psiquiátricos, onde equipas multidisciplinares poderão proporcionar cuidados de saúde mental diferenciados.
O projeto de investigação “CLINIC – Estudo de indivíduos com anomalia psíquica a cumprir medidas de segurança em Portugal” (CEEIND/03932/2017) visa estudar os processos, práticas e representações de atores envolvidos na gestão e adjudicação de indivíduos a cumprir medidas de segurança. A execução das medidas de segurança é supervisionada pelo Tribunal de Execução de Penas e prevê avaliações periódicas onde intervêm múltiplas instituições e atores, documentando as suas avaliações, interações, e as expectativas projetadas nas trajetórias dos indivíduos a cumprir medidas de segurança, incluindo perícias de psiquiatria forense, relatórios sociais, comportamentais, farmacologia, num processo que culmina com a decisão judicial que irá determinar a continuidade da medida, liberdade para prova, ou a sua extinção.
Quando foi iniciada a recolha de dados, em 2020, existiam 159 indivíduos internados em estabelecimentos não prisionais, 140 dos quais do sexo masculino. Com vista ao prosseguimento de um estudo mais abrangente e aprofundado, e de preparação do trabalho de campo, foram recolhidos e analisados 35 processos no Tribunal de Execução de Penas do Porto, dos quais passo a apresentar alguns dados sociodemográficos que ilustram algumas das circunstâncias e contingências destes indivíduos.
Se a idade à altura do crime se situa maioritariamente entre os 18 e os 39 anos, a idade atual de 29 dos internados é superior a 40 anos de idade, com 6 casos de pessoas acima dos 70 anos. A lei exige a revisão periódica das medidas de segurança no sentido de aferir se os pressupostos se mantêm, sendo que na sentença são definidos os limites mínimos e máximos da medida de segurança. Porém, não se verificando condições para a chamada licença sem jurisdição (semelhante à liberdade condicional), podem ser determinadas prorrogações de 2 anos. Deste modo, nesta amostra havia 6 pessoas que já se encontravam sob medida de segurança há mais de 25 anos.
A maioria nunca teve relações laborais estáveis. Em termos de qualificações, uma larga maioria possui níveis educacionais ao nível do primeiro ciclo, e 8 indivíduos não sabem ler ou escrever. É assinalável que 3 indivíduos nesta amostra frequentaram o ensino superior e há um caso de um doutorado.
Relativamente à tipologia de crimes, a maioria encontra-se internada devido a homicídio ou tentativas de homicídio, sendo vários os casos de violência doméstica. As vítimas tendem a ser próximas: pais, irmãos e vizinhos. O histórico clínico do doente é por vezes introduzido na descrição biográfica das perícias psiquiátricas. O diagnóstico mais comum, salvo algumas diferenças na terminologia uma vez que só os relatórios mais recentes indicam categorias do ICD ou do DSM nas suas sucessivas revisões, é Esquizofrenia Paranoide. O abuso de drogas e álcool também surgem em associação com alguns dos diagnósticos, geralmente com indicação para intervenção específica.
Com efeito, o abuso de substâncias é um dos outros aspetos relevantes que pode ser salientado da análise dos processos. Mais de metade dos indivíduos da amostra são descritos como tendo um historial de consumo abusivo de substâncias como canábis, cocaína ou álcool e isto tende a ser incluído nos relatórios periciais, por vezes como elemento causal, mas também como comorbilidade da doença mental. A análise desta amostra de casos denota a complexidade das situações e percursos de vida dos internados. Trata-se de indivíduos com baixa ou nenhuma escolarização e que dificilmente adquire competências profissionais durante o período de internamento, ao mesmo tempo que se afastam os laços sociais e familiares existentes. Se numa primeira fase, o propósito do internamento é a designada “compensação clínica” e a tentativa de reconhecimento da doença pelo indivíduo, numa fase posterior é visada a reintegração na sociedade. Porém, na maioria dos casos, inexiste disponibilidade ou condições para o seu acolhimento em liberdade. Em boa parte, isto explica-se pela natureza e temporalidade das medidas de segurança. Quando se pondera uma libertação provisória, é frequente que os ascendentes sejam já de idade avançada, necessitem eles próprios de cuidados de saúde, e demais família não se encontre disposta a acolher alguém com necessidades especiais e baixa autonomia. Por outro lado, a disponibilidade de respostas institucionais adequadas fica muito aquém das necessidades e existem vários casos na amostra estudada cuja medida de segurança é sucessivamente prorrogada enquanto são procuradas alternativas de acolhimento institucional.
Fotografia de Kristina Tripkovic, via Unsplash.

Filipe Santos
Sociólogo e Investigador
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES)
Membro da equipa do “Projecto Inocência”
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