ENTREVISTA AOS AUTORES: RUI CARDOSO MARTINS E EDGAR MEDINA

Escrito por: Joana Soares
No início deste ano assistimos a uma produção portuguesa que mereceu a nossa melhor atenção, por tratar de um crime, de um dilema ético e moral e de trazer para o público os bastidores dos tribunais portugueses. Curiosos, depois do último episódio de Causa Própria, série de ficção integralmente disponível na RTP Play, convidámos os argumentistas Rui Cardoso Martins [1] e Edgar Medina [2] para conversarem connosco, na Casa do Impacto.
Em entrevista prévia à estreia da série na RTP, a Academia Portuguesa de Cinema descreveu a produção como “Um retrato de um Portugal recente, numa série de sete episódios produzida pela Arquipélago Filmes. Dos bastidores dos tribunais para o ecrã de televisão. Causa Própria é uma narrativa original, situada numa cidade fictícia portuguesa, da equipa responsável da série Sul, Edgar Medina e de Rui Cardoso Martins. Quando um estudante aparece assassinado num jardim local, uma juíza de uma pequena cidade enfrenta um difícil dilema. Agora, tudo o que fizer pode colocar a sua família em perigo. CAUSA PRÓPRIA conta com Margarida Vila-Nova e Nuno Lopes nos papéis principais”. A somar-se a esta dupla, o elenco integra ainda nomes como Catarina Wallenstein, Afonso Laginha, Ana Valentim, Gonçalo Waddington e Miguel Borges, entre outros.
Na RESHAPE ficámos curiosos com a ideia e o processo de adaptação das crónicas “Levante-se o Réu” para o grande ecrã. Nesta rubrica do jornal Público, Rui Cardoso Martins descreveu, durante décadas, o que via enquanto assistia a sessões públicas nos tribunais portugueses. Quisemos perceber quais os principais desafios na adaptação do argumento e na preparação dos atores para a complexidade de algumas personagens. E não podíamos deixar de abordar temas relacionados com a RESHAPE para perceber, do ponto de vista dos co-argumentistas, que mensagens subjacentes haveria em torno de temas como a justiça, a reincidência, os dilemas éticos e morais, que fomos acompanhando ao longo da série.
RCM: Foram muitos os milhares de portugueses que viram a série. Foi uma reação emocional e de muito reconhecimento, com algumas exceções de pessoas que não conseguiram adaptar-se ao grau de realidade que esta ficção tem. Isto é, há coisas muito inesperadas e muito humanas que acontecem nos tribunais e que as pessoas não estão à espera de ver filmadas. A transição para o ecrã consistiu em fazer as alterações necessárias de casos verdadeiros, para um contexto de história de ficção mais alargada, que é a história da própria juíza. E nesse aspeto a adaptação foi muito curiosa e os pequenos casos, que eu tinha em crónicas num registo mais literário e mais jornalístico, ganharam outra leitura e outra visibilidade mais focada nas pessoas que aparecem no tribunal.
EM: Inicialmente tinha falado com o Rui, pois conhecia as crónicas que ele escreveu sobre pequenos casos de justiça nos tribunais portugueses, durante 30 anos. Sempre admirei esse trabalho do Rui, o lado humano, triste e cómico dessas histórias, mas também a forma como ele observava e tirava conclusões. A minha ideia inicial era adaptarmos e fazermos 30 episódios, 1 episódio por cada crónica, que seria algo relativamente mais fácil de produzir.
EM: Como produtor e argumentista, a minha ligação com a justiça enquanto instrumento de instituição judicial, era muito limitada – gostava de grandes filmes de tribunais, 12 Angry Men (1957), The Verdict (1982), To Kill a Mockingbird (1962). Por isso as questões que mais me preocupavam tinham outra dimensão. O que é que do ponto de vista ético nos faz tomar uma ou outra decisão? O que é que é verdadeiramente justo? Quais são as dificuldades, intimamente ligadas a qualquer personagem, de ir por um caminho ou por outro? Nesse sentido, quando nos foi sugerido que fizéssemos uma história apenas com 7 episódios e 2 pequenos casos pelo meio, de certa forma, o grande conflito passou a ser o conflito moral da nossa juíza, que tem a ver com um outro sentido de justiça, diferente da questão institucional, que envolve perguntas para as quais não temos resposta.
RCM: É a irracionalidade que irrompe, o mal que surge não se sabe bem de onde. Um dos motores desta série é a percepção de eu, ou alguém meu conhecido, poder algum dia vir a estar naquela circunstância dramática. De certeza que isto já aconteceu. E esta ideia foi alargada, em termos ficcionais, para a questão: “E se uma juíza se visse, de repente, com um verdadeiro dilema de mãe?”. Isto teve muito eco nos portugueses que, inclusivamente, chegaram a fazer apostas em casa. Uns defendiam que a juíza iria aplicar a lei (fez o que tinha a fazer) e outros apostavam na parte emocional (seguir o instinto de mãe).
EM: Estamos a trabalhar com a ideia de que a parte institucional e judicial nem sempre é a representação do que é mais justo a fazer. Acho que muitas pessoas envolvidas em casos judiciais sentem que a aplicação rigorosa da lei não representa justiça para um conjunto de vidas e algumas acabam por ter de tomar decisões em contextos bastante exigentes.
RCM: E os juízes e os magistrados, por quem tenho muito respeito e que trabalham imenso (contrariamente ao que se diz), também sentiram da nossa parte e no trabalho do realizador João Nuno Pinto, a preocupação em criar cenicamente um tribunal com honestidade deste lado.
RCM: Uma vez, assisti a um caso em que a única maneira de fazer justiça era ir contra a lei. Tratava-se do caso de uma miúda de 14 anos que, depois de ter sido violada pelo pai, fez um aborto. Esse aborto foi denunciado e tanto a médica que a ajudou, como a mãe, foram constituídas arguidas porque o feto já tinha quase 7 meses. Mas a decisão corajosa da juíza foi a de não dar como provado que elas sabiam o tempo exacto do feto e não cumprir rigorosamente uma lei que, nestes casos, seria sempre injusta. Estes dilemas, transportados para um caso inédito como o da série, movem muita gente, não só por a série estar muito bem realizada, mas também por ter sido uma experiência importantíssima para todos os atores, pela dimensão moral.
RCM: Esse é um dos grandes mistérios da humanidade, até porque há doenças mentais e às vezes não se sabe que estão lá, mas existem. De vez em quando aparece uma coisa sem explicação. Espero não ser spoiler – mas o que é que os ténis estão ali a fazer? Os ténis são precisamente a dimensão que parece irracional, mas que é uma projeção de outras coisas. É uma metáfora de outra coisa, corporizada num ato. [Sobre a questão das pessoas boas ou más] é um mistério. Como diz a minha mulher, acredito que a maldade nasce da falta de amor em casa. Nos casos das crianças que são maltratadas ou pouco acompanhadas, mais tarde ou mais cedo, isso vai refletir-se. Veja-se o caso dos criminosos sexuais, que passaram pelo mesmo. Nesse aspeto há uma espécie de renovação da maldade.
EM: Acho que há coisas muito diferentes. Há pessoas boas que fazem coisas más. Há pessoas que fazem coisas más. E há pessoas que não têm empatia pelos outros e que, por isso, fazer o bem ou o mal é algo que está apenas subordinado ao seu próprio interesse.
RCM: Essa personagem existe, como pessoa. Conheci alguém que esteve no Estabelecimento Prisional de Leiria desde miúdo e algumas frases são coisas que fui ouvindo. Há tempos, conheci um caso de um advogado que tinha dois clientes que, sempre que estavam para sair em liberdade, encontravam forma de voltar a ser presos, porque já não conseguiam viver cá fora. Por isso é tão importante haver organizações que tentem que as pessoas não voltem a cair nesta armadilha, como imagino que seja o caso da RESHAPE.
EM: Isso leva-nos a pensar na questão “Para que serve o sistema penal?”. Servirá para dissuadir, para reabilitar ou apenas para punir? Imagino que a punição também tenha um efeito dissuasor, mas acho que a dimensão da pena como punição é a menos interessante. Porque não há nenhuma sociedade que melhore provocando dor ou sofrimento a alguém. Já estive em duas cadeias a filmar, uma das vezes para um documentário em que acompanhava um projeto com reclusos e os sítios que visitei eram, de alguma forma sem esperança, sem cor, sem ar fresco… Mas depende muito das condições das cadeias.
RCM: É muito difícil dar um conselho geral sem sabermos para quem estamos a falar, porque cada caso é um caso. Mas pensando em voz alta [e no contexto da série] acho que é importante intervir rapidamente na dimensão de apoio psicológico. Uma pessoa que está presa, com certeza estará num enorme sofrimento. E nesse sentido, por exemplo, em casos como o da personagem do guarda de jardim ou pessoas que estejam em situações de toxicodependência, pode fazer toda a diferença ter algum mecanismo de apoio psicológico. E depois tentar, dentro do possível, trabalhar dentro ou fora dos Estabelecimentos Prisionais e ter esperança na sua reinserção.
RCM: A dimensão conta como é óbvio. As pessoas conhecem-se. Uma juíza numa terra pequena não pode ir para o café beber gin tónico, senão é logo alvo de desqualificação e, se quiser sair, mais vale ir a uma cidade grande como Lisboa. O facto de as taxas de divórcio serem gigantes em todo o país, na ordem dos 70%, também conta nesses meios.
Eu tenho experiência de uma terra pequena, porque sou de Portalegre, onde houve um crime horroroso com duas pessoas que conhecia muito bem. Nessas situações, desencadeia-se quase um jogo de snooker. Quando se atira uma bola contra o triângulo que está no centro, elas batem umas nas outras até se espalharem por todo o lado. A partir daí começa um jogo que nunca sabemos bem como vai acabar. Outra coisa que nos surpreendeu foi que ao falarmos com certas pessoas sobre a série, percebemos que havia quem não fizesse a mínima ideia de que nas terras pequenas também há tribunais, juízes e crimes. E nesse aspeto, acho que fomos certeiros.
RCM: Acho que os atores, no geral, estão todos muito bem. Todos leram a crónica inicial, mas houve algum trabalho. Por exemplo, alguns atores foram a tribunal comigo ver algumas sessões. A Margarida [Vila-Nova] esteve à conversa com uma juíza jovem, com filhos, que se encontrássemos no café não imaginaríamos que teria esse peso de estar a julgar outras pessoas no seu dia-a-dia. E esse trabalho de normalização da personagem foi feito.
Depois há o trabalho do Afonso Laginha (personagem do David), que também foi um trabalho muito intenso, de auto-questionamento. “Quem é este David, será que sou assim um bocadinho?”. Esta experiência de trabalhar com atores, com e sem experiência, foi muito proveitosa. Há um trabalho muito importante por detrás disto, que nem sempre é falado. Neste caso, do produtor e assistente de realização, João Pinhão, porque quando os atores entram na pele das personagens é preciso haver alguém a orientá-los. Cada um criou a sua personagem e também a sua figura.
EM: A minha experiência com a receção dos atores aos argumentos foi de um entusiasmo muito genuíno. Os argumentos têm uma importância, obviamente, central para um filme ou para uma série, mas não são propriamente peças muito bonitas de ler. Um argumento é uma peça um bocadinho mais árida. Quando começámos a passar o argumento aos atores, sentimos que liam com um enormíssimo entusiasmo. Aconteceu-nos alguns atores lerem os argumentos todos numa tarde, da mesma forma que algumas pessoas viram os sete episódios todos de seguida.
RCM: E houve ainda quem preferisse ter a nostalgia de esperar uma semana pelo episódio seguinte.
EM: Isso é muito importante para nós, mas também porque os argumentos são a forma de seduzirmos as pessoas para os projetos e é muito bom encontrarmos essa receção. O argumento é o início de um caminho e não está fechado até ao momento em que acabamos de editar o processo. Por isso houve uma discussão com o realizador da série, João Nuno Pinto. Houve coisas que foram alteradas e nós também já tínhamos alterado muita coisa. Depois os atores encontram dificuldades entre eles.
RCM: Às vezes acrescentam coisas fantásticas, às vezes cortam coisas importantes. Mas faz parte.
EM: O nosso método de trabalho é muito cooperativo e é um diálogo a muitas vozes, até chegarmos ao resultado final. Esses momentos de apropriação dos textos são riquíssimos, a par do trabalho de todos os atores. O Gonçalo Waddington pega naquele personagem de advogado insuportável e traz coisas que não imaginávamos: a forma como imita a voz do médico-legista, a forma como entoa o “r”, todas essas coisas contribuem para a dimensão performática da coisa.
RCM: Já agora, é a forma como ele captou aquilo que muita gente pensou: “é impossível um advogado falar assim ou levantar-se em tribunal daquela forma”. Mas já vi coisas dessas acontecer. Voltando aos atores e às personagens, o que o Edgar costuma dizer e que é um dos lemas que tento passar nas minhas aulas de argumento, é a importância de respeitar a personagem, mesmo que não seja respeitável. Neste caso, cada um de nós ao pensar naquelas personagens está a pensar nas pessoas que estão por trás. E isto leva-nos para o tema do vosso trabalho [RESHAPE], que é a possibilidade de acreditarmos que as pessoas são capazes de ser salvas. Isto é, ser possível intervir numa pessoa que teve uma infância terrível, que fez algumas asneiras, não deixando de reconhecer os seus erros, mas respeitando os seus traumas e acreditando na possibilidade de renovação.
Podíamos ficar à conversa com esta dupla de argumentistas que, tão gentilmente, aceitou o nosso convite, sobre tantos outros temas que acabam por se cruzar entre a arte e a reinserção. Foi um gosto recebê-los na Casa do Impacto, vizinha da Arquipélago Filmes, onde os poderão encontrar. Em nome da RESHAPE, agradecemos ao Rui Cardoso Martins e ao Edgar Medina a disponibilidade para esta entrevista e o reconhecimento da importância de garantir reinserção digna de quem está ou esteve preso. Muito obrigada a ambos!
INFORMAÇÃO ADICIONAL
[1] Rui Cardoso Martins (RCM): Escritor, cronista e argumentista de cinema e televisão e autor de peças de teatro, durante mais de 20 anos assistiu a mais de 700 casos de justiça em sessões públicas nos tribunais. Foi repórter do jornal Público e escreveu uma série de crónicas que deram origem ao livro “Levante-se o Réu”, no qual foi inspirada a série. Recebeu dois prémios Gazeta, é co-fundador das Produções Fictícias, foi co-argumentista da série Sul e do filme A Herdade (2019). É argumentista e co-autor da série televisiva Causa Própria (2022).
[2] Edgar Medina (EM): Uma licenciatura em Física e um mestrado em Arts in Filmmaking depois, fundou a Arquipélago Filmes e é sócio-fundador da produtora de Macau Inner Harbour Films. Nos últimos anos tem um currículo invejável como argumentista, realizador e produtor de documentários e filmes de ficção nacionais e internacionais, assim como publicidade e conteúdos para museus e estruturas culturais. Co-autor, argumentista e produtor da série Sul (2019), traz juntamente com Rui Cardoso Martins da série de ficção Causa Própria (2022), à qual se segue, no mesmo ano, a rodagem da série de ficção Matilha, um spinoff da série Sul, com o Apoio à produção audiovisual do ICA 2020.
Fotografia da autoria de Ana Brígida, Arquipélago Filmes.

Joana Soares
Comunicação & Fundraising na RESHAPE
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