TRABALHO: UM DIREITO DE TODOS OU RESERVADO APENAS A ALGUNS?

Artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
  1. Todos os seres humanos têm direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

O trabalho é uma dimensão que assume um peso enorme na vida de muitos de nós. Nos dias de hoje, e de modo geral, assistimos a uma crescente preocupação na população ativa relacionada com a construção e desenvolvimento de carreiras profissionais alinhadas com os valores e objetivos pessoais e, também, que se enquadrem nos gostos, interesses e preferências individuais.

Pessoalmente, acredito que o trabalho constitui, muitas vezes, uma extensão de nós próprios, na medida em que o podemos encarar como uma oportunidade para colocar as nossas características, bem como nossas competências e habilidades ao serviço da comunidade, tendo em vista a supressão de necessidades existentes.

Nesta lógica, o trabalho pode ser considerado como uma importante fonte de realização e promotor de qualidade de vida e bem estar do indivíduo.

Recordo o artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma: “Todos os seres humanos têm direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.

Contudo, pergunto: será que, de facto, todas as pessoas têm os mesmos direitos e oportunidades em relação ao acesso ao mercado de trabalho?

Infelizmente, creio que ainda existe um longo caminho a percorrer neste sentido. Considerando a população ex-reclusa, os desafios são acrescidos, já que se verifica um maior risco de desemprego e exclusão social. Quando pensamos em pessoas que viveram privadas da liberdade, não podemos deixar de enumerar vários fatores que dificultam a sua reinserção social e profissional, tal como o estigma associado que ainda se sente na sociedade e as escassas oportunidades que, por isso, lhes são proporcionadas.

Além disso, o isolamento social e o afastamento do mercado de trabalho, por um período muitas vezes elevado, poderá traduzir-se numa maior dificuldade de ajustamento e adaptação, após a saída em liberdade, bem como na ausência de competências de empregabilidade. Estes aspetos poderão, por sua vez, levar a uma diminuição da autoestima, do sentido de autoeficácia ou da motivação para a mudança. Importa, ainda, salientar que uma grande percentagem da população reclusa apresenta baixos níveis de escolaridade e, assim, terá maior probabilidade de integrar postos de trabalho não especializados e com um ordenado reduzido, reforçando deste modo uma possível desvantagem profissional, económica e social.

Portanto, retomando a questão anterior, torna-se claro que nem todas as pessoas têm as mesmas oportunidades no que diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho. No entanto, é importante dar passos para mudar este paradigma, já que a manutenção de um emprego estável e a participação ativa na vida em sociedade são bons fatores preditivos de uma transição para a liberdade bem sucedida, diminuindo a probabilidade de um ex-recluso reincidir no crime. Para além de fornecer um modo de subsistência, o trabalho é um elemento fundamental na reconstrução do projeto de vida destas pessoas, facilitando também o retomar de rotinas e a adoção de comportamentos e padrões de interação socialmente esperados, reforçando a sua autoestima e sentido de pertença à comunidade.

Ou seja, não é possível falar em (re)inserção social sem abordar a dimensão profissional. Como poderemos, então, criar mais e melhores oportunidades de emprego digno e facilitar a integração no mercado de trabalho de alguém que esteve privado da liberdade e afastado da vida em comunidade durante tanto tempo?

É, sem dúvida, uma preocupação sentida pela nossa equipa e pela qual procuramos dar o nosso melhor!

Neste sentido, revela-se necessário e urgente trabalhar diretamente com a comunidade de modo a aumentar a consciencialização acerca desta problemática e criar cada vez mais oportunidades de emprego digno para a população ex-reclusa. Para isso, há que desenvolver parcerias e trabalho em rede entre entidades, bem como estabelecer contactos e ligação com empregadores locais que poderão estar disponíveis para acolher pessoas nestas circunstâncias e, ao longo do tempo, criar uma maior confiança e awareness nesta área: ao criar mais trabalho, estaremos a reduzir a probabilidade de reincidência no crime e, deste modo, poderemos viver numa sociedade mais segura.

Por outro lado, o trabalho desenvolvido diretamente junto da população reclusa e ex-reclusa também é, claro, de extrema importância.

A partir da experiência que a APAC Portugal tem vindo a desenvolver no terreno ao longo dos últimos anos, tornou-se evidente a necessidade de apoiar os nossos beneficiários não apenas dentro dos Estabelecimentos Prisionais, mas também no momento da saída em liberdade. De facto, trata-se de um período de risco, no qual poderão surgir grandes dificuldades de adaptação, sobretudo para quem não tenha uma rede de suporte adequada. Sendo este o ponto de partida, alargámos os nossos serviços através da criação do Gabinete de Integração Sociolaboral, com a ambição de promover a inclusão social e defender a igualdade de oportunidades, de modo a que a transição entre a reclusão e a liberdade seja facilitada, apesar dos (novos) desafios encontrados ao viver em sociedade. Procuramos acompanhar, deste modo, todo o processo de reinserção desde a empregabilidade até à plena autonomia.

O apoio prestado no Gabinete é personalizado às especificidades de cada caso e deverá ser entendido numa lógica de colaboração e trabalho em equipa entre técnico e beneficiário. Como tal, em conjunto, iremos procurar:

  1. identificar dificuldades e principais necessidades;
  2. definir metas e objetivos prioritários;
  3. planear estratégias e procedimentos necessários para transformar expetativas em realidade;
  4. identificar e criar redes de suporte e apoio;
  5. trabalhar a motivação para promover o envolvimento em atividades e a mudança.

Assim, o beneficiário é incentivado a participar ativamente na (re)definição do seu projeto de vida e sentir-se responsabilizado pelas suas decisões e pelo seu futuro.

É fundamental procurar compreender o quadro de referência da pessoa acompanhada e a sua perspetiva do mundo, através da escuta ativa e adoção de uma postura de não ajuizamento. Ao longo do processo, a relação humana deverá ser considerada prioridade, com base no pressuposto de que o estabelecimento de relações seguras e positivas poderão facilitar o processo de reabilitação. Neste contexto seguro, a pessoa deverá ser incentivada à expressão das suas dificuldades e preocupações, apoiada na identificação das suas potencialidades e estimulada a mobilizar os seus recursos para a mudança.

Um grande objetivo do acompanhamento prestado neste âmbito é, sem dúvida, capacitar e promover a autonomia da pessoa, através da identificação de habilidades e competências que possam constituir recursos para alcançar o futuro desejado. Isto é, o técnico deverá focar-se, sobretudo, nas potencialidades e pontos fortes do beneficiário e não tanto nas suas barreiras (o que a pessoa “pode” fazer e não tanto o que a pessoa “não pode” fazer). Trata-se de olhar mais para as oportunidades, ao invés dos desafios, reforçando assim o sentido de confiança e autoeficácia. Paralelamente, irá procurar-se promover a aquisição e o desenvolvimento de novas competências ou ferramentas que sejam úteis, não apenas em contexto profissional, mas também nas várias áreas da sua vida, a longo prazo.

Esta é, sem dúvida, uma missão que nos motiva e apaixona imenso: ter impacto junto da comunidade e ajudar, de algum modo, na transformação destas vidas.

O Gabinete de Integração Sociolaboral está a funcionar na Casa do Impacto (Travessa de São Pedro, nº 8) e qualquer pessoa interessada em agendar um atendimento poderá contactar-nos via telefone ou e-mail:
  • +351 937 717 439
  • acompanhamento@apac-portugal.pt
Trabalho: Um direito de todos ou reservado apenas a alguns?

Trabalho: Um direito de todos ou reservado apenas a alguns?

Importa relembrar que, enquanto sociedade, temos o dever de olhar para os casos de maior vulnerabilidade e procurar fazer as mudanças necessárias para que todos tenham iguais direitos e oportunidades.

Acreditamos que “Todo o Homem é maior do que o seu erro” e, portanto, após um período de privação de liberdade é necessário criar oportunidades para que estas pessoas possam reconstruir o seu projeto de vida, em função dos seus valores, ambições e sonhos.

Não podemos menosprezar o trabalho enquanto caminho para chegar lá!

Artigo escrito por Catarina Medeiros
Técnica de Acompanhamento