O OLHAR QUE ESPERA UM RECLUSO QUANDO SAI EM LIBERDADE
Na primeira sessão em que participei como voluntária da APAC no Estabelecimento Prisional (E.P.) de Alcoentre, perto do final, enquanto se trocavam argumentos sobre a perceção que a sociedade terá sobre eles no dia em que saírem em liberdade, um dos reclusos perguntou-me, com certo ar de desafio (eu tinha acabado de aterrar e estaria mais a ouvir e tentar situar-me), qual era a ideia que eu tinha acerca das pessoas que iria encontrar, dado que era a primeira vez que entrava numa prisão.
No momento saiu-me a verdade, sem grandes floreados ou pretensões: que não tinha qualquer ideia acerca deles, nunca tinha tido de pensar sobre o assunto. Mais tarde, de regresso a Lisboa, ia a pensar noutras respostas que poderiam ter sido mais refletidas e construtivas do que um eufemismo de “vocês e a vossa realidade nunca me interessaram”.
Poderia ter dito que tinha uma opinião genericamente negativa, porventura alterada durante a sessão; poderia ter respondido, de aula aprendida, que vinha consciente e discordante dos preconceitos da sociedade face à população reclusa e por isso aberta a poder encontrar aquilo que de facto encontrei: um ambiente afável e um grupo de pessoas “normais”, apesar dos crimes que as trouxeram àquele lugar.

Na altura, e ainda hoje, seja pelo olhar e reação que me foram devolvidos no meio segundo seguinte ou pela interpretação que tenho vindo a fazer deles, sinto que a resposta, tosca e pouco estudada, mas a que me foi mais natural e honesta, tinha por isso sido acertada, ou pelo menos tinha “recebido aprovação”. Posicionamento feito, a relação que fomos estabelecendo a partir daí foi sempre fluída e sem grandes posturas de defesa.
Desde então, e acerca do tema debatido nessa sessão – o olhar que espera um recluso quando sai em liberdade – tenho visto e pensado na importância e enorme necessidade de existirem pessoas e lugares nos quais ele não encontre um olhar condenatório, nem tão pouco condescendente. No fundo, um olhar que não venha de cima para baixo, mas de igual para igual.
A verdade crua é que um recluso, passado o cumprimento da pena, passa a ser um ex-recluso. Numa nova forma, a condenação passa para muitos a perpétua, patente nos olhares dos que lhes são próximos, dos potenciais empregadores, clientes, tantos outros.
(…) um olhar que não venha de cima para baixo, mas de igual para igual
Por uma parte, é compreensível que assim seja (viesse a aproximar-se do meu círculo mais próximo, do familiar, conseguiria eu olhar para um ex-recluso com bons olhos?), mas por outro, é evidente que o jugo de uma condenação perene não pode senão dificultar ou impossibilitar qualquer um de recomeçar e perdurar num caminho limpo. Afinal de contas, todos dependemos, nem que seja em parte, de encontrar confiança no olhar do outro para manter a passada firme. Especialmente nos momentos mais atribulados, será ela a gerar desejo e recursos para se querer ser e fazer melhor.
Enquanto voluntários, tentamos estar naquelas 2h30 quinzenais de igual para igual. Claro, não o estamos totalmente: vimos de fora, dirigimos os tempos e os conteúdos, (ainda) moderamos nós a sessão, mas a conversa que se vai gerando informalmente poderia acontecer tanto ali, como noutra parte qualquer, ultrapassando o contexto prisional e as suas barreiras relacionais, deixando de parte os crimes, condenações e penas, que à Justiça e não a nós coube apreciar. Quero acreditar que isso tem um impacto positivo na vida e caminho dos que ali estão. Mas em liberdade, fora do ambiente controlado do Estabelecimento Prisional, no dia em que tenhamos de frente um destes homens e mulheres, a todos cabe a responsabilidade sobre o olhar que lhe for dirigido. A todos cabe responsabilidade sobre o contributo ou desincentivo à sua recuperação.
Acerca disto, pergunto-me se o lema da APAC – Todo o homem é maior que o seu erro – deverá ter maior força para um recluso, que se debate com as consequências dos seus erros, ou se mais a poderá ter para quem está “fora”, e olha para esse recluso: “Este homem é maior que o seu erro. Este homem é mais do que a ideia que eu tenho dele”.
Artigo escrito por ,Teresa Rebello de Andrade,
voluntária da APAC
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