CLEANIC | TERAPIA EM COMUNIDADE

As comunidades terapêuticas – destinadas a apoiar pessoas que sofrem de problemas relacionados com o uso e abuso de substâncias e outros comportamentos aditivos – são, em muitas dimensões, equiparáveis às pequenas casas de detenção que a APAC Portugal acredita serem uma solução humana e eficaz para a reinserção de reclusos. Conscientes deste forte paralelismo e procurando aprender com a experiência de parceiros credíveis, visitámos recentemente a ,Cleanic, uma comunidade terapêutica em Valadares (Vila Nova de Gaia), onde fomos generosamente recebidos.

A serenidade do jardim exterior era já um bom augúrio do que viríamos a conhecer no interior da casa: um bonito palacete, com corredores de madeira e de pé alto, permeável à luz natural e decorado de forma modesta, mas com todas as condições necessária a uma vida comunitária confortável. A conversa com uma das fundadoras da comunidade e uma visita guiada pela casa permitiram-nos reunir algumas das informações que aqui partilhamos.

Os Beneficiários

A entrada no programa é voluntária e implica a assinatura de um contrato de internamento. A idade dos residentes é variável e estende-se dos 15 aos 75 anos.

É uma comunidade mista, com capacidade licenciada para 28 residentes. O programa abrange (1) pessoas com comportamentos aditivos e (2) pessoas com perturbações psiquiátricas e (3) pessoas com duplo diagnóstico (1 e 2). A maioria dos residentes é referenciada por estruturas do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), mas há também casos de pessoas inimputáveis referenciadas pelas equipas multidisciplinares de apoio técnico os tribunais. Existem também casos de particulares que pedem para participar no programa.

O Espaço

A casa conta com várias divisões que promovem dinâmicas comunitárias, de entre as quais, uma cozinha, uma sala de refeições, salas para sessões de terapia ou aulas de grupo, dois dormitórios comunitários (repartidos por género), salas para o staff e uma sala de artes. O palacete é rodeado por um espaço livre amplo – que foi determinante na opção pelo arrendamento do lugar. Além do jardim convidativo, existem um campo de jogos, um campo de hipismo e um ginásio. Estes espaços são essenciais, já que a prática de exercício físico é obrigatória.

O Programa e as Rotinas

A Cleanic implementa, em Portugal, o Programa Portage, baseado numa abordagem de comunidade, psicologia positiva e terapia cognitivo-comportamental e na gestão individual de cada caso.

O programa está dividido em várias fases de evolução que são determinadas pelo desenvolvimento de cada um dos residentes e, embora estejam tendencialmente ligadas a recompensas concedidas (como as visitas a casa ou o uso de telemóvel), não as determinam necessariamente. Cada caso é um caso. As dinâmicas e atividades que existem nas rotinas diárias são destinadas a todos os residentes. A comunidade funciona, de forma geral, como um todo e não em grupos determinados por fase de tratamento. Por questões práticas, algumas terapias não são feitas com todos os residentes, mas em três grupos mais pequenos. Nos seus primeiros dias na Cleanic, um novo residente é acompanhado por um padrinho, escolhido pela equipa técnica de entre os residentes numa fase mais avançada do tratamento. O princípio transversal da casa é o de que tudo é feito em conjunto com alguém, desde as terapias até à mais pequena tarefa diária, como um passeio pelo jardim, uma refeição ou uma limpeza.

O dia começa cedo e à mesma hora para todos. A primeira reunião do dia é comunitária, dando a cada residente a possibilidade de refletir sobre o dia anterior, reconhecendo voluntariamente uma conduta errada que tenha tido e elegendo, democraticamente, um residente que, por algum motivo, tenha sido uma referência positiva. De manhã e de tarde, há grupos de terapia que criam um espaço propício e acompanhado para que os residentes ganhem ferramentas (i) para falarem sobre e gerirem os seus sentimentos, (ii) para a escuta, (iii) para tomarem decisões democráticas e as aceitarem e (iv) para avaliarem a sua preparação quanto ao acesso a determinadas recompensas ou a uma nova fase no tratamento.

Existem também, por vezes, seminários temáticos – por exemplo, sobre impulsividade ou autoconhecimento – definidos de acordo com cada plano de recuperação. Todos os residentes, sem exceção, têm que preparar pelo menos uma skill: uma aula ou workshop em que partilham com a comunidade algo para que tenham talento, desde conhecimento de uma área de saber específica até uma aula sobre como passar bem a ferro.

Por fim, existem ainda várias atividades, orientadas por professores, que incluem aulas de teatro, equitação, dança, yoga e expressão pela pintura.

Ao longo do dia, são várias as ferramentas de que os residentes dispõem para evoluírem no seu tratamento. A cada noite, cada residente preenche um Registo Diário, um instrumento em que regista os sentimentos que viveu ou atitudes negativas que teve ao longo do dia, a terapia fez e com quem, bem como um parágrafo em que descreve brevemente o seu dia. Os planos de tratamento são individualizados, definidos por cada residente, em colaboração com a equipa técnica e outros utentes. Cada plano é partilhado com toda a comunidade, estabelecendo pelo menos um objetivo claro e 4 estratégias específicas para o alcançar. Os residentes são também convidados a darem-se feedback mútuo relativamente a atitudes externas negativas.

Princípios e Regras

Os principais princípios são os da Honestidade e da Liberdade. Não há controlo à saída da casa. Os residentes sabem que são livres de escolher sair e sabem que a consequências de uma saída não recomendada é possivelmente a expulsão ou o recomeço do tratamento.

São critérios de expulsão, não automática, o consumo de drogas ou álcool, uma agressão física ou verbal, o contacto afetivo-sexual com outros residentes ou um manifesto desinteresse pela abordagem terapêutica.

Financiamento

O modelo financeiro da Cleanic assenta num contrato de convenção assinado com o SICAD (Ministério da Saúde), suportando o Estado 80% do custo por cama/residente, aqui se incluindo também os custos de infraestruturas (renda), alimentação e staff. Os demais 20% serão suportados pelo residente ou pela família (ou, se assim se justificar à luz do regime comum, pela Segurança Social). As camas particulares – de beneficiários que não tenham sido referenciados pelo SICAD ou por um tribunal – não são comparticipadas, sendo os respetivos custos integralmente suportados pelo residente.

Embora não representem ainda uma parte significa da sua sustentabilidade financeira, a Cleanic presta também outros serviços complementares, como consultas em ambulatório.

Inês Viterbo
Coordenadora de Políticas Públicas na APAC Portugal