A MINHA EXPERIÊNCIA A VIVER NUMA PRISÃO DIFERENTE EM ITÁLIA – DIÁRIO DE VIAGEM II

Diários de Viagem I pode ser lido aqui

Acordei antes das 7h para experimentar a casa de banho sem banheira – aquelas que têm um buraco estranho no chão, como me recordo de encontrar por toda a América Latina. Apesar da aparência, funcionava otimamente e a água era quente. Desci para o pequeno-almoço onde o Sr. Luca já bebia uma chávena almoçadeira de chá, que intercalava com um mergulho de uma bolacha grande forrada com iogurte e marmelada, dentro da mesma chávena. Situações que relativizem o meu mergulho de batatas fritas no sundae do McDonalds são sempre bem-vindas. Falámos da minha família e de como a Economia (na sequência da pergunta do que eu havia estudado) deveria ser solidária e para todos, servindo não apenas para distribuir volumosos rendimentos para alguns. Eu bebi café feito nas cafeteiras duais e antigas, com um filtro a meio, e comi uma fatia amigável de Panetone.

“A família da casa”, Fiorella e Luca, ali reside há 42 anos. Têm 5 filhos, sendo que um deles vive com a esposa noutra casa de família, próxima da de Fiorella e Luca e à qual chamam de “casa aberta”, pois acolhe crianças durante curtos espaços de tempo. Estas casas são acolhedoras, quentes, vividas. Todas dependem de uma grande lareira sempre acesa, rodeada de mobiliário incrivelmente velho e bonito, com imensos detalhes, seguramente das várias pessoas que já por ali viveram ou passaram (desde os desenhos de criança ao espanta espíritos com elefantes, pendurados nas paredes).

O dia seguia longo e intenso. Fui para a CEC – Comunità Educante con i Carcerati, a casa APAC, com o Lorenzo, um rapaz que tinha acabado de conhecer e que vive na casa onde estou há uns 7 meses. Quando cheguei, todos os recuperandos estavam na sala/ capela a rezar. Percebi que leem uma ou duas parábolas Bíblicas e que depois as discutem – cada um diz o que pensa e porquê. Tentam criar sentido para a parábola e transpô-la para as suas vidas, acabando por pedir perdão a Deus por algo que fizeram ou por pedir auxílio em algo que gostariam de ter feito. A constante facilitação de momentos onde os recuperando podem ouvir histórias, interpretar comportamentos e transportar os mesmos para as suas vidas é sem dúvida uma das características de sucesso destas casas. Todas as semanas existe um momento de partilha focado num dos recuperandos da casa. Às terças-feiras, um dos recuperandos escreve uma composição sobre si próprio e os restantes escrevem uma composição sobre ele sendo que, no momento de partilha, todos leem em voz alta o que escreveram e comentam de seguida.

Dois homens a carregar uma bandeja

De manhã comecei por ajudar na cozinha, onde cortei beringelas para dourar no forno, em preparação para o almoço. Fui ainda assistir à produção de queijos, onde fazem caciotta e ricotta. Explicaram-me que o ricottaestá pronto a comer de um dia para o outro, enquanto o caciotta só ao final de 60 dias. Entretanto chegaram várias pessoas de um laboratório local, responsáveis por fazer alguns testes de forma a avaliar a possibilidade de produção de um outro tipo de queijo. Mais tarde, um coordenador da APG23 viria a contar-me que um dos principais trabalhadores da queijaria é um recuperando que veio de uma prisão tradicional, onde esteve 17 anos internado, sob drogas fortes e sem qualquer noção da realidade. Demorou algum tempo, mas ao fim de alguns meses nesta casa APAC, conseguiu deixar a dependência que tinha para com a maioria dos medicamentos, voltou a falar e começou a ter uma vida mais ou menos normal e independente, a trabalhar e a conviver com os outros.

O almoço foi uma pasta com tomate bastante saborosa, que acompanhou com salada, queijo e uma espécie de piadinas com novo queijo e legumes. Percebi que o Marco, o gestor da casa, estava a ter um dia complicado e por isso organizei-me para ir conhecer mais da casa, espaço e atividades ao longo do dia, com os recuperandos. Primeiro visitei o estábulo, la stala, onde existem umas 50 vacas leiteiras, que são diariamente ordenhadas, alimentadas, entre outros cuidados. O Joaquim, recuperando Português, trabalha nos estábulos juntamente com dois colegas Albaneses. Falou-me sobre o horário semanal dos recuperandos, que basicamente consiste em trabalhar durante todo o dia e depois participar numa atividade diferente à noite – por exemplo, às segundas têm visitas de voluntários, às terças têm a partilha sobre eles próprios, às quartas há uma atividade na qual cada um dos recuperandos tem, literalmente, a oportunidade de “reclamar” com os outros e apontar o dedo, ou seja, partilhar e discutir as atitudes boas e más uns dos outros, de forma a não acumularem maus sentimentos, rancor ou ódio, tentando perceber o porquê da ação de cada um.

O Dritain, um dos recuperandos Albaneses, disse-me, em jeito de confissão, que detesta esta parte “de fazer queixas dos outros e de escrever”. Indica que, se soubesse que “se tinha de escrever”, não tinha solicitado vir para a APAC. Já eu, penso que este é um fantástico indicador e que para estes homens deve ser bem mais complicado exprimirem os seus sentimentos e lidarem com os problemas que vão surgindo entre eles do que suportarem o trabalho diário no estábulo, ou mesmo estarem privados de liberdade. Uns dias mais tarde o Joaquim reiterou esta ideia, dizendo que “é mais difícil estar aqui do que na prisão normal. Este trabalho com vacas não custa nada, o que custa é o trabalho interior”.

Placar a dizer:

Nos primeiros dois meses, os recuperandos que vão para a APAC ficam só a assistir a tudo o que se passa. É apenas no final deste período que decidem se querem fazer parte da casa ou não e, se positivamente decidirem, assinam uma declaração onde se comprometem a ficar na casa e a seguir o programa e as suas regras. A declaração, de apenas 2 páginas, é bastante clara e, caso os recuperandos não cumpram com o que lhes compete e não respeitem as regras, são expulsos da casa e regressam à prisão tradicional. Alguns dos recuperandos indicam que, ao início, pensavam que a casa APAC era apenas uma prisão mais permissiva, onde podiam fumar e ver TV sem restrições, mas que rapidamente perceberam que era muito mais do que isso.

Durante a tarde passei algum tempo com o Paolo, que é um ex-recuperando da APAC – terminou a sua pena ali e, embora tenha saído em liberdade, decidiu ficar por lá a trabalhar. Para além de apoiar com a carga burocrática e os processos de acolhimento, vai tendo conversas individuais com os vários recuperandos e garantindo que está tudo em ordem. Perguntei-lhe o que é que ele considerava mais difícil na metodologia APAC, enquanto pessoa que passou pela mesma, e ele disse-me que era falar sobre a família, “reviver as feridas”. Ao mesmo tempo diz que é o mais importante e enfatiza que, para ele, foi mesmo marcante a parte de escrever. “A falar pode dizer-se muita coisa, a escrever pensa-se mais, há uma reflexão e, acima de tudo, pode-se voltar a ler passado um tempo e perceber a própria evolução”.

Assim que nos sentámos no escritório e começámos esta conversa, sentiu a necessidade de dizer “sono un ladro, rubo da quando avevo 4 anni” (“sou um ladrão, roubo desde que tenho 4 anos”). A crueldade contra si próprio e a fria necessidade de confessar o seu pecado, salientando que embora estivesse fora, já tinha estado dentro, deixaram-me completamente estarrecida. (Foi um daqueles momentos em que nos assaltam as emoções, em que nos sentimos também obrigados a dizer “não és o único, eu não mereço que me confesses os teus pecados, também tenho muitos!”).

O Paolo é um crente da APAC e estava verdadeiramente empenhado em perceber como me poderia ajudar. Expliquei-lhe porque é que ali estava e que buscava acima de tudo conhecimento. Queria aprender a metodologia a vivê-la, numa casa que já tivesse testemunhado várias histórias e acumulado muita experiência. Ele levou a sério tudo o que lhe disse e, por isso, ao fim de alguns minutos, foi chamar-me à cozinha, pediu-me para me sentar com ele à secretária e mostrou-me em detalhe os vários ficheiros abertos, questionando se me interessavam e imprimindo todos pelos quais eu mostrava interesse.

Lénia Mestrinho
(Gestora de Novos Projetos e Membro da Direção da APAC Portugal)