LA FERME DE MOYEMBRIE | PARTE II

Artigo escrito por: Inês Viterbo

Parte I disponível aqui

GARANTIAS DE SEGURANÇA

Este placement à l’extérieur tem a seu cuidado não só a gestão administrativa de logísticas e dos espaços, mas também a gestão das rotinas dos residentes e da segurança. Não existem guardas prisionais na herdade. E este é talvez o indício mais representativo de um dos segredos para o sucesso deste projeto: o princípio da confiança nos residentes. A experiência de se ser digno de confiança pode ser transformadora em qualquer circunstância mas esse potencial transformador é exponenciado quando existe um risco ou um espaço para se faltar a essa confiança. A ausência de guardas prisionais e de um permanente controlo dos residentes, por cautela ou por defeito, responsabiliza-os. Éric diz que, ao longo destes anos, testemunhou na La Ferme de Moyembrie milagres de transformação desbloqueados por esta atitude de confiança a que os residentes não estão habituados no sistema comum. “Sobretudo porque eles vêm de um registo de desconfiança entre eles, desconfiança de si mesmos, desconfiança no sistema de justiça”, explica o co-presidente. A confiança está também nos pequenos detalhes: o quarto de cada residente, devendo estar limpo e organizado de acordo com as regras de vida da casa, é também uma zona de privacidade por excelência e, por esse motivo, nunca é visitado a não ser por convite do residente.

Durante as 24 horas dos 7 dias da semana, há sempre na herdade um representante da La Ferme de Moyembrie, seja voluntário ou colaborador permanente, que os residentes poderão chamar em caso de necessidade. Por regra, e nos termos da lei, as saídas dos residentes têm que ser autorizadas por um juiz. Em termos práticos, os responsáveis da La Ferme de Moyembrie – tanto um dos co-presidentes como qualquer dos supervisores – têm poderes delegados para autorizar as saídas que se relacionem com questões de saúde, emprego ou reinserção.
Apesar da ausência de guardas prisionais, existem pontos de contacto entre a La Ferme de Moyembrie e o sistema prisional comum. A herdade é visitada, com frequência quinzenal, por um técnica representante do Conselho de Reinserção do estabelecimento prisional da proximidade, o último onde pouco mais de metade dos residentes cumpriu pena antes de se mudar para a La Ferme de Moyembrie. Nas suas visitas regulares, a técnica conversa com cada um dos residentes, avaliando a sua situação e servindo de ponte de contacto entre os mesmos e o tribunal.
A segurança é também sustentada numa definição clara das regras fundamentais ao bom funcionamento da herdade. A violação dessas regras implica necessariamente consequências, as quais, dependendo da gravidade da situação, se podem estender desde uma reprimenda formal pelo tribunal até a um regresso ao regime comum de cumprimento de pena num estabelecimento prisional.
A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE
A relação com a comunidade alargada começou a ser trabalhada desde o primeiro momento por Jacques e Geneviève, que foram um casal estimado na comunidade e mantinham uma relação de proximidade com as autoridades locais. Os fundadores do projeto tiveram desde cedo uma sensibilidade que ainda hoje se mantém em Moyembrie: a de que, embora a verdadeira reinserção de ex-reclusos exija o envolvimento da sociedade, existem nas comunidades locais receios que não podem ser menosprezados, designadamente quanto ao risco que comummente se associa à interação com pessoas que, em algum momento da sua vida, cometeram um crime. Estes receios das comunidades não devem ser desconsiderados, sob pena de se gerar um alarme social contraproducente, mas antes desconstruídos diariamente, através do conhecimento pessoal de histórias concretas.
Hoje em dia, explica Éric, os residentes dão vida às atividades económicas locais, não só pelos bens que produzem, mas também pelos serviços que consomem localmente e por frequentarem associações recreativas e desportivas, onde se dão a conhecer pessoalmente, aproximando-se da comunidade e desconstruindo mitos negativos tendencialmente associados a reclusos ou ex‑reclusos. O envolvimento da comunidade é inclusivamente refletido pelo maire local (Presidente da Câmara) – que é ‘membro de direito’ da direção da associação – e pela sua esposa, voluntária na cozinha da La Ferme de Moyembrie. A preparação do futuro dos residentes também abrange os seus círculos pessoais de relação, familiar ou de amizade. Em média 70% dos residentes recebem visitas ao fim-de-semana ou visitam os seus entes queridos durante as licenças de saída que lhes sejam concedidas.
 

O IMPACTO DO PROJETO

A La Ferme de Moyembrie acolhe anualmente cerca de 50 residentes, dando resposta a apenas 1/3 dos 150 pedidos de admissão que recebe. Desde o ano 2000, mais de 500 pessoas beneficiaram deste projeto.

Cada residente permanece na herdade durante uma média de 9 meses, tempo que deve ser delimitado e se considera suficiente para intermediar uma vida em liberdade: a La Ferme de Moyembrie deve servir de trampolim para uma saída que se deseja que aconteça. Todos os residentes saem da herdade com uma solução de alojamento e nos três meses seguintes 60% dos ex-residentes encontram uma orientação de vida ou uma ocupação, seja num emprego, seja em formação, seja por se reformarem ou por integrarem uma comunidade Emaús.

A La Ferme de Moyembrie impacta também a vida de 40 voluntários e 9 trabalhadores, contratados não só para supervisionar atividades agrícolas e técnicas (como cultivo, produção de queijo, criação de gado e manutenção de veículos).

De uma forma geral, em França, a taxa de reincidência no universo de ex-reclusos que cumpriram parte da sua pena num ‘placement à l’extérieur’ é inferior à verificada no universo de ex-reclusos que apenas cumpriram pena no sistema comum. Dito isto, o impacto da La Ferme de Moyembrie nessa reincidência não é de medição fácil, porque alguns ex-residentes vão perdendo gradualmente o contacto com a herdade. Éric explica que esta ausência de contacto é, em muitas das vezes, um bom sinal. “Há um ciclo que se fechou na vida deles – o do cumprimento de uma pena – e um novo ciclo que se gera, que os regenera.” A La Ferme de Moyembrie, mesmo sendo um ‘placement à l’extérieur’, continua a ser um lugar de cumprimento de pena e, nessa medida, associa-se a um ciclo antigo. Por outro lado, existem ex-residentes que, por sua opção, mantêm contacto com a herdade e fazem-no como demonstração de gratidão, essencialmente para partilharem com Éric e com os demais colaboradores da La Ferme de Moyembrie os progressos que alcançaram.

UMA HERDADE AEROPORTO

A La Ferme de Moyembrie é um projeto transformado. Começou por ser um abrigo para pessoas excluídas da sociedade e transformou-se numa casa de saída para ex‑reclusos, para ser, hoje em dia, uma casa de transição para a liberdade. Não ambicionou, no momento da sua fundação, ser aquilo que é hoje. Transformou-se naquilo que tinha que ser, à medida que foi dando resposta às necessidades sentidas. E fê‑lo, diz Éric, através de uma equipa sólida, comprometida, de “pessoas que, muito mais do que terem competência para o trabalho que ali desenvolvem, se identificam profundamente com os valores da La Ferme de Moyembrie” e fazem uma opção pela simplicidade na vida em conjunto com os residentes. O governo do projeto é partilhado entre todos, numa lógica horizontal e não vertical. Nas palavras de Simon, um dos supervisores contratados da La Ferme de Moyembrie, “na herdade, tentamos tomar todas a decisões em equipa, coletivamente, e também tomar o máximo de decisões possível com os residentes.”
É um projeto transformado, com vidas transformadas por fora e por dentro. Após a sua chegada à herdade, os residentes são acompanhados a uma visita médica geral, da qual resulta um plano de saúde individualizado. A La Ferme de Moyembrie cuida da imagem dos residentes por acreditar que a partir do exterior se dá início ao trabalho interior mais importante de autoestima, de consciência da dignidade intrínseca a cada um.

E são vidas transformadas gradualmente. “Enquanto estão em reclusão, estes homens sonham com o que poderão fazer quando saírem em liberdade. O tempo na herdade, mais do que um tempo de sonho é um tempo de adaptação”, explica Éric. O período de 9 meses na La Ferme de Moyembrie deve ser um tempo para uma reaprendizagem da realidade, um tempo de normalização de rotinas, de reaproximação a si mesmo e aos seus laços pessoais.

Um dos residentes, no seu testemunho, conta que quando saiu da prisão estava realmente perdido. “Eu já não sabia o que era dinheiro. Para comprar um computador portátil, dei a minha carteira ao funcionário e disse “Sirva-se”. Não entendia nada e estava perdido. Agora estou pronto para sair e capaz de confiar.”. Em Coucy-le-Château-Auffrique, existe uma herdade que funciona como um aeroporto: um lugar intermédio de passagem para a liberdade.

A vida é um comboio. Quando se sai de um comboio, ele não espera por nós. Não podemos libertar reclusos da prisão com os seus pertences num saco de lixo e dizer “É isso, estás livre”. É isso a liberdade? Sem dinheiro, sem nada? Não. A passagem pela herdade, durante um ano, com tempo e ajuda para nos reconstruirmos, essa sim, é um começo da liberdade.

Testemunho de Philippe (ex‑resident)


Inês Viterbo
(Coordenadora de Políticas Públicas da APAC Portugal)