UM NOVO TIPO DE PRISÕES: APAC

(Este artigo foi originalmente publicado na edição de Março de 2017 da Revista Brotéria)

Artigo escrito por: Duarte Fonseca

 

RESUMO

As prisões APAC estão a mudar o paradigma da reinserção social de reclusos e ex-reclusos.

Paradoxalmente, nasceram no Brasil, país reconhecido pela violência no meio prisional e por ter um dos sistemas prisionais mais precários do mundo.

As APACs conseguem taxas de reincidência inferiores a 20% (em contraste com os 70% das prisões a nível mundial) e custam menos de um terço de uma prisão comum.

Em Portugal existe um movimento forte para que seja possível aplicar a totalidade da metodologia.

 

Palavras-Chave: Metodologia APAC; Prisão; Sociedade; Reinserção; APAC-Portugal

 

INTRODUÇÃO

56 Mortos no passado dia 2 de Janeiro na prisão Anísio Jobim em Manaus no Estado de Amazonas – Brasil.[1]

31 Mortos no dia 6 de Janeiro na prisão de Agrícola de Monte Cristo no Estado de Roraima – Brasil.[2]

26 Mortos no passado dia 15 de Janeiro na prisão de Estadual de Alcaçuz no Estado de Rio Grande do Norte – Brasil.[3]

 

Até onde vai a nossa responsabilidade por estas vidas?

 

Sinto que sou responsável por estas mortes. Apesar da distância, sinto que não me envolvi o suficiente para evitar que isto acontecesse. Julgo que a responsabilidade não pode ser toda atribuída ao governo brasileiro. Da mesma maneira, quando situações menos justas acontecem nas prisões portuguesas, também julgo que a responsabilidade não pode ser toda atribuída ao governo português.

 

O Brasil é conhecido por ter um dos sistemas prisionais mais agressivos e perigosos do mundo. Tem cerca de 600 mil reclusos, a 4ª maior população carcerária do mundo. Apesar disto, é o país onde nasceram as prisões mais humanas e evoluídas: as prisões APAC. As prisões APAC são conhecidas por serem prisões sem guardas, totalmente geridas por associações sem fins lucrativos e pelos próprios reclusos. Nas prisões APAC é aplicada uma metodologia de reinserção social positiva, com um foco na pessoa e em todas as suas dimensões. É um processo evolutivo constituído por 4 fases em vista à recuperação do recluso e à proteção da sociedade. Todos os reclusos trabalham, estudam e prestam serviço à comunidade, como forma de retribuição pelo mal causado.

 

Contudo, os reclusos têm que se propor a ir para uma APAC de forma voluntária e comprometer-se com o seu plano de readaptação. Os reclusos na APAC são simultaneamente os agentes de mudança e o alvo da mudança.

PARTE I – CONTEXTO HISTÓRICO DO CASTIGO

Olharmos para a história é importante. Não se trata de fazer um mero exercício teórico; trata-se antes de olharmos criticamente para o passado (e para o presente), percebendo o que não funcionou (e o que não funciona).

 

É muito interessante perceber como foram evoluindo os tipos de castigo e os métodos de encarceramento ao longo dos tempos.

Michel Foucault (1926-1984) identifica quatro formas de lidar com os crimes (e com respetivos autores) que tiveram lugar na história: o suplício, a punição, a disciplina e as prisões.[4] Estas formas de lidar com o crime foram coexistindo ao longo dos tempos, mas não necessariamente em etapas graduais e sucessivas do processo de castigo.

 

Suplício e Punição:

“O Suplício é uma pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz”.[5] Os suplícios como forma de punição foram, até ao fim do século XVIII, um espetáculo público.[6] Independentemente do tipo de crime cometido, o acusado era quase sempre vítima de penas corporais violentas.

 

Com o começo do século XIX, cenas como o desmembramento conseguido através de cavalos atrelados a cada um dos membros, enxofre a ferver derramado nas feridas seguido de fogo ateado, fogueiras públicas ou o simples passeio em vestes multicores, com grilhetas nos pés, onde o povo podia insultar, espancar e demonstrar o rancor que sentia perante seres humanos que tinham cometido crimes — deixam de ser públicas.

 

Gradualmente, o suplício do corpo desapareceu, deixando assim de ser o alvo principal de repressão penal. Contudo, algumas práticas como a marca a ferro quente ou as chicotadas foram permanecendo, embora tivessem deixado de ser públicas. Desta forma, a punição corporal limitou-se a ser parte do trabalho da justiça.[7]

Entre 1769 e 1810, começaram a surgir novos procedimentos punitivos. Foi também neste período que se redigiram os códigos penais modernos. É importante referir, contudo, que apesar da punição corporal ter sido extinta, o castigo continuou a focar-se mais na alma do que no corpo.[8]

 

Segundo Foucault, em paralelo com a evolução dos suplícios, começou a surgir uma série de correntes na Europa que revelavam uma mudança de mentalidade. Estas correntes defendiam, por um lado, que a justiça criminal deveria impor atos punitivos em vez de atos vingativos e, por outro, que as penas deveriam ser moderadas e proporcionadas aos delitos.[9] O objetivo passaria a ser punir nem de menos nem de mais, mas sim de forma coerente com o grau de severidade do crime. Esta mudança de mentalidade levou então a que se definissem os tipos de castigos e punições para cada tipo de crime. A partir do século XVII, as punições deixaram de se aplicar uniformemente a todos os castigos. As fraudes e os roubos passaram a ser punidos na medida exata.[10]

 

Disciplina:

A disciplina é prática comum desde há muito tempo quer no seio da Igreja quer no seio das estruturas militares. Quando as técnicas disciplinares que existiam em diversos quadrantes da sociedade começaram a ser aplicadas aos criminosos, deu-se uma mutação do regime punitivo.[11] O foco nas pequenas coisas e nas ações do dia-a-dia ganhou uma importância extrema. Segundo Foucault, a disciplina exigia um espaço para ser aplicada: é o caso dos colégios, conventos e quartéis. A disciplina exigia ainda um horário rigoroso. As comunidades monásticas são nesta altura o grande modelo a seguir pela rigidez que seguiam. É este tipo de disciplina que é transportado para as prisões.[12]

 

Nos inícios do século XVII, surgiram as primeiras teorias que relacionavam a disciplina com a educação dos criminosos. Contudo, devido à prática comum de suplícios, só anos mais tarde é que estas práticas rigorosas de treino e educação ganharam expressão no meio prisional — em especial nos centros de detenção de menores, onde o trabalho ocupava 9 horas diárias e a educação 2 horas, 7 dias por semana.

 

Prisões:

“As prisões são menos recentes do que se diz”.[13] A instituição da prisão como forma de tornar os indivíduos mais dóceis e úteis para a sociedade é criada antes que a lei e os códigos a tornassem a pena por excelência. É na passagem do século XVIII para o século XIX que a pena de prisão se torna uma forma de punição. Segundo Foucault, este é talvez o maior marco na história da justiça penal.[14] Até então, as prisões eram utilizadas apenas como cárceres quer daqueles que aguardavam julgamento, quer daqueles que, já condenados, esperavam pela sua punição.[15]

 

Para termos uma ideia, existem em Portugal três prisões com mais de 100 anos: o Estabelecimento Prisional de Lisboa (que data do final do século XIX),[16] o de Ponta Delgada e o de Coimbra.[17]

PARTE II – CONTEXTO ATUAL

Segundo Foucault, “conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr no seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.”[18] Esta ideia verifica-se hoje em dia.

 

As prisões a nível mundial têm taxas de reincidência (pessoas que voltam a cometer crimes e a ser presas) que rondam os 70%. Não podemos querer com a mesma solução, com mais de um século de existência, obter resultados de recuperação e integração na sociedade distintos. Os cidadãos tendem, por um lado, a desconhecer a realidade das prisões e, por outro lado, a não reconhecer humanidade naqueles que cometeram crimes.

 

Numa altura em que se fala de empreendedorismo e inovação; em que a tecnologia está a alterar o paradigma da sociedade tal como a conhecemos; em que todas as áreas e indústrias se encontram numa profunda transformação; em que se fala da 4ª revolução industrial[19] — eu gostava de apresentar as prisões APAC. É que estas prisões constituem uma revolução: são as prisões 2.0.

 

As APACs (Associação de Proteção e Apoio ao Condenado) tiveram o seu início com um grupo de voluntários da pastoral carcerária, em 1972. Este grupo visitava regularmente os reclusos da cidade de São José dos Campos, no estado de São Paulo. Aos poucos, começou a tornar-se claro que as prisões brasileiras, pela forma como estavam organizadas, não cumpriam o seu propósito. Foi assim que Mário Ottobonni, um advogado penalista, voluntário da pastoral carcerária, começou em 1974 a estudar e a idealizar o método APAC. Este era composto por diversos pilares que permitiam que um ex-recluso se regenerasse e reintegrasse na sociedade. A participação da comunidade e dos voluntários era a essência da APAC. Estes últimos haveriam de acolher os reclusos quando estes fossem postos em liberdade. Os voluntários tinham ainda um papel fundamental ao fazer a ponte entre as famílias e futuros empregadores. A primeira experiência APAC com uma prisão própria, sem guardas, totalmente gerida por voluntários e pelos próprios reclusos foi implementada em São José dos Campos em 1983.[20] Contudo, é no estado de Minas Gerais (a partir de 1986) que as prisões APAC ganham expressão. Em 2004 o estado de Minas Gerais reconhece a APAC como uma prática inovadora com resultados comprovados e torna-a uma política pública.[21] Hoje, no Brasil, existem mais de 50 APACs em pleno funcionamento e mais de 100 a serem construídas.[22] Por um lado, o custo de um recluso nas prisões APAC é cerca de um terço do habitual; por outro lado, a taxa de reincidência encontra-se entre os 10 e 20%.[23] Com os casos de motins a que temos assistido, o estado de Minas Gerais tem estado no centro das atenções como a boa prática a seguir pelos outros estados.

 

As APACs estão hoje presentes em mais de 20 países: não só em países da América do Sul (por uma questão de proximidade geográfica), mas também em países europeus (como é o caso da Alemanha e de Itália).

 

E que dizer de Portugal? As prisões portuguesas dos dias de hoje são “a detestável solução” de que falava Foucault — embora não se comparem, em termos de violência, com prisões de outros países. Curiosamente, a lei portuguesa está entre as leis mais humanas e reabilitadoras do mundo. O código penal português é muito claro: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.[24] Se lermos o Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, fica ainda mais clara a finalidade do encarceramento: “A execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade”.[25] Assim, reintegrar na sociedade os indivíduos e proteger a sociedade é a dupla finalidade das medidas privativas da liberdade — isto é, das prisões. Por isso, a metodologia APAC — que será descrita na próxima secção — adapta-se e articula-se com o nosso código de execução de penas.

 

Apesar disto, a taxa de reincidência em Portugal ronda os 50%,[26] longe ainda dos resultados alcançados pelas prisões APAC. O custo de um recluso em Portugal é superior a 40€ por dia,[27] sem contar com os ajustes diretos.[28] Não contribui certamente para estes resultados a sobrelotação de cerca de 110% que se vive atualmente nos 49 estabelecimentos prisionais portugueses. Estes valores colocam Portugal na 10ª posição na Europa com maior taxa de sobrelotação.[29]

 

Em 2015, foi fundada a associação APAC Portugal com o objetivo de humanizar o sistema prisional e contribuir para a reintegração social de reclusos e ex-reclusos. A associação tem como visão implementar a metodologia APAC nas prisões portuguesas em estreita colaboração com as autoridades portuguesas.

Na secção final deste artigo, será descrita em mais pormenor esta associação.

PRISÕES 2.0: A APAC

A expressão APAC é utilizada de várias formas. Em primeiro lugar, é utilizada para designar uma metodologia; em segundo lugar, para referir as associações que promovem e implementam a metodologia; por fim, e não menos importante, APAC é uma forma de referir o espaço físico onde a metodologia é aplicada — isto é, prisões e/ou unidades prisionais APAC.[30] Para evitar confusões, usarei diferentes expressões a partir deste ponto. Assim, a expressão ‘APAC’ será utilizada para referir a metodologia de reinserção; a expressão ‘unidade APAC’ para referir o local onde a metodologia é implementada — prisões autónomas, alas prisionais dentro de prisões comuns ou prisões comuns.

 

A metodologia APAC é uma metodologia de recuperação e reintegração de reclusos na qual se procura, por um lado, alcançar a valorização humana, o regresso do ex-recluso à sociedade civil de forma ativa, cooperante e pacífica, e, por outro, contribuir para a redução da reincidência criminal.[31] Ao trabalhar a reinserção dos reclusos, a metodologia i) promove a justiça, ii) ajuda a proteger a sociedade e iii) participa no apoio às vítimas, através de práticas de justiça restaurativa.[32]

 

A metodologia APAC defende que a reinserção social está ao alcance de qualquer pessoa. Desta forma, a metodologia sobrepõe o Homem ao erro e ao crime por ele cometidos. “Todo o Homem é maior que o seu erro”, é a grande premissa da metodologia, a par de outras, tais como “Ninguém é Irrecuperável”.[33] Ao ser aplicada, a metodologia deverá incluir um plano de readaptação específico para cada recluso. A participação do recluso na elaboração do plano é uma peça fundamental no processo de mudança. Na verdade, se ele não manifestar de forma inequívoca a sua intenção de participar no processo e de aderir às rotinas e compromissos associados ao programa de reabilitação, a metodologia não pode ser aplicada.

 

A metodologia prevê 9 pilares fundamentais que trabalham todas as dimensões — espiritual, emocional, intelectual e física — da pessoa.[34] Estes pilares são o voluntariado, a valorização humana, a família, o suporte de pares, o mérito, a saúde e assistência jurídica, a comunidade, a espiritualidade e o trabalho. Só se pode considerar que a metodologia APAC está a ser totalmente implementada quando cada um desses pilares está já a ser trabalhado com os reclusos.

A METODOLOGIA NA PRÁTICA:

O processo de reabilitação e reintegração é gradual. Não podemos esperar que uma pessoa que nunca trabalhou, que nunca teve uma família estruturada nem rotinas ou disciplina, consiga mudar de um dia para o outro. A metodologia prevê quatro fases, cada uma das quais espera do recluso uma responsabilidade diferente e um envolvimento cada vez maior no seu próprio processo de mudança.[35] É, assim, um processo evolutivo onde o mérito é valorizado. Embora todos os pilares da metodologia devam ser trabalhados, a intensidade de cada pilar varia ao longo do tempo, consoante a fase do percurso de recuperação. O “recuperando” (nome dado aos reclusos em recuperação nas unidades APACs no Brasil) tanto pode progredir nas várias fases até à liberdade condicional, como pode regredir. A regressão é aplicada quando o recuperando não tiver sido capaz de assumir as novas responsabilidades que a nova fase exige dele.[36]

 

Tipicamente, as associações que implementam a metodologia APAC trabalham também nas prisões comuns para dar a conhecer a metodologia e para que os reclusos se possam propor a integrar o programa. Em qualquer unidade APAC no Mundo, a porta de entrada é marcada pela seguinte frase: “Aqui entra o Homem, o crime fica lá fora”. Dá-se assim o início de uma nova vida, que os reclusos normalmente nunca conheceram.

 

FASE 1: A MUDANÇA DE RECLUSO PARA PESSOA EM RECUPERAÇÃO:

A primeira fase de um recuperando nas unidades APAC passa pelo auto-conhecimento e pelo “aceitar-me a mim mesmo como um indivíduo irremediavelmente imperfeito e que, com toda a certeza, nem sempre atua como eu gostaria que atuasse”.[37] Esta primeira fase é provavelmente o período mais exigente de todo o processo: a adaptação do recluso a uma nova rotina, sete dias por semana, das seis da manhã às dez da noite, em que começa a perceber onde é que no seu percurso de vida não foram criadas as condições para uma vida lícita e reta. É a partir desta rotina disciplinada que o recluso começa a construir as bases para uma nova vida.

 

As unidades APAC preveem um período experimental de dois meses, durante os quais o recluso pode decidir voltar para uma prisão comum. Caso pretenda ficar, é assinado um contrato onde aceita cumprir tudo o que está proposto no programa de reinserção, respeitando e ajudando em tudo aquilo que esteja ao seu alcance.

Um recluso que chega às unidades APAC está normalmente em fase de negação e de alheamento da realidade. É preciso confrontar a realidade do recluso com a realidade da sociedade. Este confronto é feito pelos educadores sociais treinados (voluntários ou funcionários), que muitas vezes utilizam uma linguagem dura, pois o confronto com a realidade também é em si muito duro.[38]

 

Esta é uma fase de duração variável, uma vez que cada pessoa tem um tempo próprio. A associação APAC responsável pela unidade, assim como todos os voluntários e funcionários têm de ser só e apenas instrumentos para esse confronto com a realidade, devendo respeitar o tempo e o espaço de cada um.

A mudança só acontece pela relação e pela compreensão. Compreender não significa concordar com o que a pessoa fez ou faz; compreender é acima de tudo transmitir ao outro que ele pode ser quem é, sem máscaras, diante dos funcionários e dos voluntários.[39] O envolvimento nas unidades APAC da comunidade e dos voluntários tem uma importância extrema neste processo de mudança. Os voluntários conseguem como ninguém reduzir o estigma (da sociedade) associado ao recluso e o auto-estigma (do próprio recluso). Desta forma, aproximam duas realidades (prisão e sociedade) que co-habitam lado-a-lado, mas que parecem viver em duas dimensões distintas com regras ainda mais distintas. Por outro lado, os voluntários têm a capacidade de promover uma mudança que não seja apenas temporária, mas sim efetiva e duradoura.

 

FASE 2: DE PESSOA EM RECUPERAÇÃO A PESSOA EM FORMAÇÃO:

A segunda fase, conhecida por regime semiaberto, é um período de formação intenso onde se começa a preparar a vida fora da APAC. É um período de profissionalização, mas é sobretudo um período em que o recluso começa a sentir-se apto a assumir responsabilidades. Nesta fase, o recluso começa a perceber, por um lado, que a vida está permanentemente a ser confrontada com desafios; por outro lado, que estes desafios só podem ser ultrapassados de forma lícita se o próprio recluso se comprometer com o bem; finalmente, que o compromisso com o bem envolve carregar o fardo da responsabilidade a que o recluso é chamado em cada momento.[40]

 

Dentro do possível, esta deverá ser uma fase onde as medidas de segurança são menos rígidas. Existindo condições para tal, é profícuo que os próprios reclusos ajudem em pequenas tarefas ligadas à segurança (por exemplo monitorizando as oficinas). Desta maneira, tornam-se corresponsáveis pelo bem-estar da própria unidade APAC.

Ao longo desta fase, procura-se dotar o recluso de instrumentos necessários à sua autonomia e bem-estar. A sua crescente responsabilização permite que se vá criando um sentido de utilidade. É nesta fase que o recluso começa a sentir-se mais responsável pelos colegas de cela e pelos pares em geral, assumindo a responsabilização pelo bem-estar do próximo. Este sentido de responsabilidade é de extrema importância, principalmente quando o recluso começa a ser capaz de aplicar esse sentido à sua família. O objetivo é que um dia mais tarde, quando estiver em liberdade, o possa aplicar a toda a comunidade.

 

A identificação, nesta fase do processo, de uma postura de cooperação e de uma capacidade de viver em comunidade pode ser considerado um sinal do impacto que o programa está a ter no recluso. Estes dois fatores são testemunhados por algumas atitudes concretas tais como: demonstrar alegria e disponibilidade, ser colaborativo com a entidade, demostrar seriedade tanto no cumprimento das obrigações como na aceitação da liderança, não mentir e agir corretamente com a família.[41]

 

FASE 3: DE VOLTA À SOCIEDADE

Na terceira fase, a prisão é apenas o local de dormida, uma vez que o recluso sai de manhã para ir trabalhar e volta à noite para dormir. O processo de reinserção só pode ser totalmente concluído se existir um esforço conjunto e um trabalho em rede eficaz. Nesta terceira fase, as empresas têm um papel fundamental. De preferência durante a fase anterior (de profissionalização), as empresas devem dar formação adequada para funções e perfis que existam em falta no mercado de trabalho. Não devemos esquecer que um recluso, por causa do seu registo criminal, terá mais dificuldades em arranjar trabalho do que um cidadão sem registo criminal. É por isso importante que a organização da APAC trabalhe com gestores de topo, onde a análise de necessidades do mercado de trabalho seja uma constante.[42]

 

Durante esta fase, é esperado que todas as relações familiares — que foram sendo trabalhadas nas fases anteriores — estejam consolidadas, para que a preparação da liberdade condicional possa começar a acontecer. Por entre as quatro fases, a terceira é aquela que pode criar maior ansiedade. De facto, neste período, os reclusos já conseguem ver a luz ao fundo do túnel, e começam a sentir-se livres quando saem para trabalhar — o que pode criar algumas tentações. É também normal que sintam que já não estão a evoluir e que deviam já estar em liberdade. Se assim for, pode existir alguma antipatia pelo juiz que ainda não ordenou a sua liberdade condicional. O trabalho da organização e dos voluntários nesta fase continua a ser muito importante para precaver quaisquer potenciais desvios do caminho traçado até aqui.[43]

 

FASE 4: A LIBERDADE

Um dos grandes problemas aquando da liberdade condicional é o contexto familiar e social para onde os indivíduos voltam. É por isso que, durante todo o período de reclusão, as equipas de voluntários da APAC trabalham em conjunto com as famílias. O objetivo é garantir que, quando o indivíduo volta à sociedade e à sua comunidade de origem, velhos hábitos e rotinas não voltam a acontecer. É muito importante que, durante esta fase, existam grupos de entreajuda de ex-reclusos com alguns voluntários envolvidos. É normal que alguns daqueles possam estar desempregados; para evitar esta situação, o trabalho de integração da associação deve ser contínuo.[44]

Nesta fase, começam a aparecer casos onde ex-reclusos se tornam voluntários. Com isto, um dos pilares da metodologia torna-se mais visível: o suporte de pares. É muito importante que o ex-recluso sinta a necessidade de, por um lado, retribuir à comunidade o imenso bem que recebeu quer dos voluntários, quer dos pares, quer ainda da organização e, por outro, reparar o mal que fez na sua vida anterior.[45]

Tanto o retribuir à comunidade como o reparar o mal feito podem ser conseguidos de diversas formas. O mais comum é que os ex-reclusos se tornem voluntários eles próprios e/ou usem a sua história de vida para motivar atuais reclusos. Realmente, a melhor maneira que um ex-recluso tem de encerrar o seu processo de reabilitação é sentir que o seu passado, embora não seja fonte de orgulho, pode ser uma ferramenta muito poderosa para ajudar os outros.

 

RESUMO DA APLICAÇÃO DA METODOLOGIA:

No processo de reabilitação da metodologia APAC, podemos observar três etapas distintas na reinserção de um recuperando na sociedade:

Etapa 1: Foco na introspeção e começo do processo de reintegração.

Etapa 2: Facilitação de fatores económicos (procura de trabalho e rendimento compatível), fatores sociais (facilitação de novas redes de suporte e de comunicação e reparação das relações familiares perdidas) e fatores culturais e espirituais (aquisição de novos valores e interesses, fomentação de uma nova consciência ética e comunitária).

Etapa 3: Consolidação dos fatores facilitados na fase anterior e medição do apoio prestado quer na comunidade quer na fase da liberdade.[46]

A APAC EM PORTUGAL

“É costume dizer-se que o sistema prisional, como “mal necessário” que representa, constitui um assunto ingrato do ponto de vista político e mediático: as coisas correm bem com as prisões quando não se fala nelas. Pelo contrário, quando o sistema prisional entra no debate público, raramente tal sucede por força das suas histórias de sucesso”.[47]

 

A APAC Portugal é uma associação que gostaria de alterar esta triste realidade, não só partilhando histórias de sucesso, como colocando na agenda do dia o tema das prisões.

 

Dedicamo-nos essencialmente a dois tipos de atividades:

1) Dar a conhecer as prisões portuguesas, como parte de um processo de responsabilização geral da comunidade para que cada vez mais partes da sociedade se envolvam e reconheçam a humanidade que existe naqueles que cometeram crimes.

2) Implementar os vários pilares da metodologia APAC, procurando desta forma implementar as prisões 2.0 — as prisões APAC — no nosso país (atualmente, a APAC Portugal trabalha no Estabelecimento Prisional de Alcoentre).

 

Embora exista uma grande vontade política de mudança, as prisões portuguesas são ainda ambientes muito fechados. Por isso, a melhor forma de nos envolvermos com este problema social complexo e grave é ir ao encontro de associações locais que já trabalhem com este público-alvo. Por detrás de todo o problema está o desconhecimento que os portugueses têm das prisões. Uma forma de o leitor deste artigo se envolver consiste em tomar consciência de algumas realidades. Em primeiro lugar, 14000 reclusos em Portugal. Por isso, e em segundo lugar, as prisões portuguesas são repositórios de pessoas e de talentos. Por fim, estas pessoas vão voltar à liberdade e serão nossos vizinhos. Assim sendo, mais vale que voltem para serem uma força ativa na sociedade do que para serem um peso para ela.

 

Os portugueses foram inovadores e muito humanistas a legislar; falta agora aplicar a lei na íntegra. Todavia, uma tal aplicação da lei só será possível se todos nos envolvermos e nos responsabilizarmos, enquanto sociedade e comunidade, pelos nossos próprios problemas. Estado, empresas, associações sem fins lucrativos e indivíduos têm de cooperar de forma aberta para criar um sistema mais integrador e capaz de acolher estas pessoas.

 

É essencial que nos envolvamos, nos informemos, e não fechemos os olhos a uma realidade tão próxima, mas tão escondida e esquecida. Não devemos ficar parados e indiferentes. Não devemos ignorar e esquecer esta realidade de tantos que sofrem e que não tiveram as mesmas oportunidades de inserção na sociedade.

Dito tudo isto, é importante que, na nossa vida, estejamos focados. Por isso, se o leitor já está envolvido com outras problemáticas tão ou mais difíceis de lidar — como os refugiados, os sem-abrigo, as crianças e idosos —o meu conselho é que não desista. Não desista de lutar por um mundo melhor e mais justo: um mundo mais humano!

 

Referências Bibliográficas

[1] Plínio Fraga, “Prisões Decapitadas”, A Revista do Expresso, Edição 2308 (21 de Janeiro de 2017): 46-51.

[2] Novo Motim em Prisão Brasileira causou 33 mortos in http://www.jn.pt/mundo/interior/novo-motim-em-prisao-brasileira-causou-33-mortos-5589500.html.

[3] Fraga, “Prisões Decapitadas”: 46-51.

[4] Michel Foucault, Vigiar e Punir: nascimento da Prisão, Editora Vozes, Petrópolis, 1999.

[5] Foucault, Vigiar e Punir, p.36.

[6] Cf. Foucault, Vigiar e Punir, p.12.

[7] Foucault, Vigiar e Punir.

[8] Cf. Foucault, Vigiar e Punir, p.20.

[9] Cf. Foucault, Vigiar e Punir, p.99.

[10] Foucault, Vigiar e Punir.

[11] Cf. Foucault, Vigiar e Punir, p.166.

[12] Foucault, Vigiar e Punir.

[13] Foucault, Vigiar e Punir, p.260.

[14] Foucault, Vigiar e Punir.

[15] Paulo Pinto Coelho, Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, Coimbra 2016.

[16] José Leite, Estabelecimento Prisional de Lisboa inhttp://restosdecoleccao.blogspot.pt/2011/04/estabelecimento-prisional-de-lisboa.html.

[17] Joana Marques Alves, Prisões velhas e perigosas em todo o país in https://sol.sapo.pt/artigo/548479/prisoes-velhas-e-perigosas-em-todo-o-pais.

[18] Foucault,Vigiar e Punir, p.261.

[19] Governo lança hoje 60 medidas para a Indústria 4.0 inhttp://expresso.sapo.pt/economia/2017-01-30-Governo-lanca-hoje-60-medidas-para-a-Industria-4.0.

[20] Mário Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso? Método APAC, Edições Paulinas, São Paulo 2001.

[21] Durval Ângelo Andrade, APAC – A face humana da prisão, O Lutador, Belo Horizonte, 2016.

[22] FBAC, APAC no Mundo, in http://fbac.org.br/index.php/en/realidade-atual/map-of-the-apacs-in-the-world.

[23] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[24] Alínea 1 do Artigo 40.º do Código Penal Português.

[25] Alínea 1 do Artigo 2.º do Código de Execução de Penas.

[26] Provedoria de Justiça, As nossas prisões: III relatório, Lisboa 2003.

[27] Rute Coelho,Cada preso custa 43 euros. Em San Marino, 685, in http://www.dn.pt/sociedade/interior/cada-preso-custa-43-euros-em-san-marino-685-euros-5067461.html.

[28] Cadeias gastam 19 milhões em ajustes diretos in http://www.jornaldenegocios.pt/economia/justica/detalhe/cadeias_gastam_19_milhoes_em_ajustes_directos.

[29] Council of Europe Annual Penal Statistics, Space I – Prison Populations in http://wp.unil.ch/space/files/2017/03/SPACE_I_2015_Report_170314.pdf.

[30] Facebook APAC Portugal in goo.gl/v46d7Q.

[31] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[32] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[33] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[34] Valdeci Antônio Ferreira, Juntando Cacos, Resgatando Vidas, Editora O Lutador, Belo Horizonte 2016.

[35] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[36] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[37] Carl Rogers, Tornar-se Pessoa, Padrões Culturais Editora, Lisboa 2009, p. 20.

[38] Ferreira, Juntando Cacos, Resgatando Vidas.

[39] Laurinda Alves e Alberto Brito, S.J., Ouvir, Falar, Amar: A compreensão é a única força de mudança, Oficina do Livro, Amadora 2011.

[40] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[41] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[42] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[43] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[44] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[45] Ottoboni, Vamos Matar o Criminoso?.

[46] Margaret Wilson e Caroline Lanskey, European Communities of Restoration Growdwork Report, University of Cambrigde 2015.

[47] Intervenção pública da senhora secretária de estado adjunta e da justiça Drª. Helena Mesquita Ribeiro em 20 de Janeiro de 2017.