PUNIR: CRIME E CASTIGO

Artigo escrito por José Souto de Moura, no contexto de uma formação de voluntários a APAC.

CRIME
1.1. A sociedade organiza-se para permitir uma convivência pacífica entre as pessoas. Há valores, interesses, que são assegurados pela ordem jurídica que se estabelece e assim se elegem os bens jurídicos. Mas há bens que pela sua essencialidade reclamam uma protecção o mais eficaz possível e, para tanto, quem viola esses bens fica sujeito a uma punição. O direito penal, na parte especial dos Códigos e em leis avulsas não é mais do que a eleição dos bens essenciais ao funcionamento da sociedade – previsão – e o estabelecimento das consequências da violação desses bens – cominação. O crime é pois um injusto merecedor de pena. O injusto afere-se pelo prejuízo que o comportamento causa (ilicitude) e o merecimento de pena pelo significado social que assume o comportamento (culpa). Ao eleger uns bens e outros não o direito penal surge como fragmentário. Isto, porque o carácter especialmente gravoso da pena exige que o sistema penal só intervenha como “ultima ratio” da organização social que o Estado promove. A subsidiaridade surge então aqui como a exigência de que a intervenção tenha lugar, só quando os outros meios se revelarem insuficientes – necessidade – e só quando a punição se não revele ineficaz (criminosos por ideologia).

1.2. A prática do crime corresponde a uma atitude de quem coloca os seus interesses pessoais acima dos da vítima, ignorando estes. É pois sempre um comportamento egocêntrico com uma conotação ética evidente.Na etiologia do crime aponta-se por regra a exclusão social como a principal responsável. Simplesmente, se a maior parte dos crimes são praticados por pessoas de fracos meios e aculturação precária, a maior parte dos pobres não comete crimes. A explicação tem que ser multi-factorial e a marginalização social pode ter muitas outras causas para além da pobreza:A pobreza de cada um afere-se, pelo próprio, em relação a um certo paradigma, que pode ser mais ou menos elevado. Por isso abundam os crimes contra o património “white collar”. A subida do nível de vida não fez baixar este tipo de crimes.A disfunção familiar com efeitos ao nível da educação é a grande responsável pelo desaparecimento de mecanismos de censura. O que é potenciado pela dessacralização do mundo (pecado…? “Deus não existe, por isso comei e bebei que a vida é curta”) pelo relativismo moral, pelo individualismo exacerbado, pela procura de paraísos artificiais (droga) ou de realidades virtuais e o impacto sofrido com o mundo real.Acrescem evidentemente, a tudo isto, áreas específicas de delinquência que têm na base distúrbios da personalidade ainda não patológicos (crimes passionais), o desemprego, a mobilidade e o desenraizamento consequente (terrorismo) etc. etc.


CONFRONTO COM O SISTEMA

2.1. Justificação da pena

Podia não haver penas? Ciclicamente aparecem pensadores que se revelam abolicionistas. Radbruch escrevia há oitenta anos que o importante não era melhorar o sistema penal e sim acabar com o sistema penal.A própria “Criminologia Crítica” ou a “Nova Criminologia”, ao fazer depender a delinquência do sistema capitalista, reputado profundamente injusto, acreditava na extirpação do crime com o advento da sociedade socialista. Tudo isto se tem revelado, no entanto, utópico. Justificação político-estatal: O ordenamento jurídico estatal é condição básica da convivência nas nossas sociedades. A protecção de bens essenciais (já o vimos), tem que ser musculada para que a violação desses bens seja melhor assegurada. Não só a sociedade exige, como o Estado considera tarefa sua uma política criminal preventiva, mas também repressiva. Justificação sócio-psicológica: A comunidade é integrada por pessoas com sentimentos morais que reage ao crime. O Estado não pode ignorar esta realidade sob pena de ser confrontado com focos insurreccionais e vindictas privadas. Se ser homem tem o sentido de ser responsável, a sociedade exige que o homem delinquente “responda” pelo que fez. E “responder”, só tem aqui o sentido, de “pagar” pelo que fez. Justificação ético-individual: Tem que ser reconhecida a dignidade humana do delinquente o que exige que também ele seja considerado um ser moral. O Estado deve proporcionar – não impor- as condições para que o criminoso opte por uma conversão interior ou expiação que não será fazer dele um “homem bom” (essa não é hoje tarefa do Estado), mas tão só um cidadão que respeita as norma penais.

2.2. Natureza da pena
A pena tem que ser sofrimento? O positivismo decimonónico defendeu a terapia social como sucedâneo do direito penal. Tinha os dias contados, porque ignorava que qualquer política criminal tem que ter em mente a sociedade que é a sua razão de ser. E tal sociedade funciona a partir de um dado aceite, mesmo que não demonstrado cientificamente, que é a liberdade humana. E das duas uma: ou se destrói a autonomia da pessoa através de tratamentos que se mostram incompatíveis coma a dignidade de cada um, ou renunciamos a encarar toda esta problemática em termos de patologia e de terapia, como se de medicina se tratasse.Mais uma vez se dirá que a sociedade reage ao crime censurando-o. A expressão dessa censura tem que levar consigo a nota de reprovação de um acto que se reputa negativo.Ora não existe outro modo de o fazer senão impondo um mal ao condenado. Essa imposição que não passa de um instrumento, não é, como melhor se verá, um fim em si. Mas será sempre uma limitação de direitos do condenado (liberdade ambulatória, disposição do património, etc.).A mera censura ética ou reprovação moral mostrar-se-ia neste terreno inútil: seria indiferente à maioria dos delinquentes e para a sociedade seria claramente insuficiente. Mas surge a propósito, então, toda a problemática do perdão e sua eventual transposição para o sistema penal. Como é sabido, no domínio dos crimes particulares e semi-públicos o Estado reconhece o valor de uma atitude de perdão enquanto opção individual, e deixa de haver procedimento criminal face à renúncia ou desistência de queixa. Mas claro que o perdão não pode ser deslocado da consciência moral do indivíduo para a tarefa estatal de manter a paz social, sob pena de essa tarefa estar irremediavelmente comprometida.Por isso é que o magistrado, funcionário do Estado, actuando por conta e em nome da comunidade não pode perdoar os crimes. Tem que protagonizar uma reacção penal. Qual reacção e em que medida, essa é a sua especial tarefa ao serviço da justiça penal. Entramos então no domínio dos fins das penas.


2.3. Fins das penas
A teorização da problemática dos fins das penas costuma ser tratada ao nível de uma ciência que é a ciência do direito penal. Ora, ao contrário do que ocorre com a maior parte dos ramos científicos, de há séculos que não existe unanimidade acerca do que se pretende com as penas. Curiosamente, o fundamental, da razão de ser de todo o sistema repressivo penal, é exactamente o que ainda está sujeito a controvérsia. Do “just desert” americano à prevenção geral positiva continental vai alguma distância, e com efeitos práticos sensíveis. E é assim, porque facilmente entramos num domínio que é já meta jurídico e no fundo traduz uma certa cultura.Importa no entanto conseguir algum consenso na matéria. Hoje, e nesta Europa continental, as legislações, a doutrina e a jurisprudência têm dado passos relevantes. Vejamos o nosso panorama interno.

2.3.1. Consabidamente, a problemática gira à volta da opção entre uma reacção virada para o passado – pune-se porque se cometeu um crime – ou a pensar no futuro – pune-se para que se não cometam, ou cometam menos crimes. Retribuição e prevenção são então as palavras-chave, interessando àquela sobretudo a compensação da culpa e a esta a perigosidade do agente e a predisposição sempre latente na sociedade para delinquir. O Código Penal português (CP) dá-nos uma indicação sobre fins das penas no seu art. 40º ao dizer que toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o n.º 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Complementarmente, o art. 71º, nº 1 do CP, a propósito da medida da pena diz-nos que ela deve ser feita “em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção”. Em função da culpa do agente, não porque a medida da pena tenha que coincidir com a medida da culpa, mas porque não pode ultrapassar a medida da culpa. Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de simples consequência positiva, quando tiver lugar, mas não pode ser arvorada em finalidade primária da pena. No pressuposto de que, por expiação se entende a compreensão da ilicitude e a aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade, ou, até, para alguns, se reconduz à ideia de “conversão moral” do delinquente. A expiação é uma atitude do condenado em que o mesmo reconhece o mal que fez e aceita a pena, sabendo que a sociedade está disposta e deseja reconciliar-se, em consequência, com o mesmo.Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, contraposta no artº 40º do C.P. a defesa dos bens jurídicos à reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver nesta uma finalidade especial preventiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há-de socorrer do instrumento da prevenção geral. E no entanto, será algo discutível que se tenham elegido só estas duas finalidades preventivas. Porque, por uma lado nada impede que se prossigam mais finalidades, e, por outro, porque a defesa de bens jurídicos é sem dúvida uma finalidade da pena, mas do mesmo modo que também é uma finalidade de todo o sistema penal, e não só repressivo como preventivo. E até a própria reinserção social, que aparece cumulativamente também só visa a protecção dos bens jurídicos. No fundo, este é o propósito de toda a política criminal. Daí que a expressão deva ser entendida, a nosso ver, quando se está a tratar de fins das penas, como cobrindo uma referência à prevenção geral, designadamente positiva ou de integração. Como já se viu, o art.º 40º do C.P. debruça-se sobre matéria que é já meta jurídica, porque, ao procurar tocar na questão central de todo o sistema penal, defende implicitamente uma certa concepção do homem. No entanto, a congruência que se descortine entre o dito artº 40º do CP e a ordem de valores que informa a Constituição desloca, nessa medida, a questão, para o diploma fundamental, legitimando que a problemática em foco possa ser abordada sem se sair do direito positivo. Desde logo, com a preocupação da reinserção social encara-se o delinquente com algum optimismo, em que o respeito pela dignidade que lhe é inerente vai de par, por regra, com o reconhecimento de uma capacidade de modificação, quando não de revisão de vida. Com o papel assinalado à culpa aceita-se a liberdade de decisão e portanto a responsabilidade moral do homem, em geral. Liberdade, encarada não como questão metafísica que se pretenda provar racionalmente e antes como dado a ter em conta na política criminal. Quanto à prevenção geral, na sua vertente positiva, atende-se a uma preocupação de pacificação e estabilidade da comunidade, enquadradas numa política social.

2.3.2. Continuamos a entender que a retribuição da culpa deve ser afastada como um fim das penas, que assim se limitam a ter propósitos preventivos. A pena deve ser pois sempre “utilitária”, e, para além das convicções pessoais de cada um, tal se imporá à luz do que dispõe o art.º 18º da Constituição, segundo o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. O retributivismo puro significa o acrescentar de um mal (sofrimento do condenado, reputado sofrimento justo), a outro mal (sofrimento da vítima ou dano social injusto). E a pretensão é de que desse modo se compensará ou equilibrará o mal do crime, para ser atingida uma situação de igualdade, que significaria justiça. Ora, uma pretensão de justiça nestes termos parece-nos uma ficção, a roçar mesmo algo de exorcismo. O mal do crime é, enquanto passado, inapagável, a compensação tem o seu terreno próprio na área da responsabilidade civil, e a pretensão de se atingir com o castigo uma situação de equivalência ou igualdade, obviamente que se depara com dificuldades, até ontológicas.Em primeiro lugar, porque o mal sofrido pela vítima não tem que ser, e não é, da mesma natureza que o mal imposto com a pena. E mesmo que o fosse, externamente (Talião), sempre ficaria por aferir o sofrimento padecido por cada qual. Não estaremos perante um sentimento de vingança, em si um sentimento negativo? No entanto, importa reter que o sentimento de censura ou de apreço, que a sociedade costuma exprimir das mais variadas formas como reacção, respectivamente à prática do mal, ou do bem, é unicamente de ordem moral, e não tem que ser transposto sem mais para o direito penal. Porque uma coisa é termos um direito penal eticamente fundado, integrando dimensões como dignidade da pessoa, liberdade ou culpa – culpa pressuposto e culpa limite – e outra o Estado assumir ele mesmo a censura moral de um crime como o instrumento da regulação social. Ao Estado competirá, antes, deslocar a retribuição como ideal puro de justiça (porque o crime foi cometido) para uma resposta dada à sociedade, com efeitos preventivos e pacificadores (para que o condenado e os potenciais delinquentes não cometam crimes e a comunidade sublime os seus sentimentos de revolta). Só que, então, estaremos já no campo da pena utilitária e a pisar os terrenos da prevenção.

2.3.3. Em matéria de prevenção geral não está excluído que o art. 40º citado seja compatível com um efeito de prevenção geral negativa, como intimidação de todos os potenciais delinquentes, devidamente controlada pela medida da culpa que possa ser imputada ao agente. Os últimos 50 anos, porém, sublinharam ao nível da doutrina, sobretudo germânica, a prevenção geral positiva ou de integração como fim essencial da pena. Esta surge, pois, como instrumento principal de controlo social, ao serviço da defesa dos bens jurídico-penais. Não se dirige portanto, enquanto tal, ao delinquente, ou aos potenciais delinquentes, mas sim ao conjunto dos cidadãos.No que já foi o dizer de Günther Jakobs, e numa fórmula que vem sendo repetida, prevenção geral enquanto processo de “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, para além de “modelo de orientação para os contactos sociais”, ou “réplica perante a infracção da norma, executada à custa do seu infractor” . Aqui se desenham já as vertentes que podem assinalar-se à própria prevenção geral positiva: um efeito de confiança, pedagógico e de pacificação social.O efeito de confiança efectiva-se quando os cidadãos verificam, não só que o direito é para se cumprir, como, sobretudo, que por essa via se sentem mais seguros. É um efeito de satisfação das expectativas, depositadas na seriedade da advertência ínsita na previsão normativa penal. A norma, se jurídica e portanto coerciva, dispõe sempre de instrumentos para que a sua observância se imponha. No caso do direito penal esse instrumento é, em princípio, a pena.O efeito pedagógico retira-se da criação (ou do reforço) da autocensura individual, por parte de todos quantos têm que refrear os seus impulsos para infringir e não infringem. Os quais experimentam, mais ou menos conscientemente, uma satisfação dupla: com o sofrimento do criminoso que tem que cumprir pena por ter cometido o crime, e com o facto de o próprio ter resistido ao crime, subtraindo-se a qualquer pena .O efeito de pacificação social, já atrás aflorado, analisa-se num mecanismo de escape, para evitar que os sentimentos de repulsa ou revolta sentidos pela vítima ou outros cidadãos, se manifestem à margem do sistema. Importa ter em atenção aqui as dificuldades de que pode revestir-se a aferição dessas expectativas comunitárias.Em primeiro lugar, há crimes que se cometem e são pouco ou nada conhecidos. A maior parte, no entanto, conhece-se. Ora esse conhecimento pode ter uma extensão muito diferente, desde o grupo restrito dos que conviviam com a vítima, até ao alarme nacional, ou mundial, relacionado com a notoriedade do agente (ou da vítima). Outra questão que pode colocar-se é a que resulta de algum pluralismo de valores da sociedade global que teve conhecimento do crime. Boa parte pode reprovar firmemente o facto tendo expectativas fortes de punição, e outra parte pode tender para a desculpabilização, desinteressando-se da punição daquele delinquente. Pense-se, por exemplo, na maneira díspar como se reage, na nossa sociedade, a crimes fiscais, de um modo geral à fuga ao fisco, ao tráfico de influências e à corrupção, ao aborto, à violação do segredo de justiça, aos crimes chamados “de honra” praticados no seio de certas etnias, ao pequeno tráfico de droga etc. etc.Finalmente, vivemos numa sociedade em que a comunicação social se interessa cada vez mais pelos casos de justiça, sobretudo se respeitam a crimes que envolvem gente conhecida ou menores. Haverá pois que ter em conta a diferença entre expectativas reais da população, e o que for resultado de um tratamento dado ao caso pela comunicação social.Tudo isto nos leva a concluir que a auscultação das expectativas da comunidade tem que ser realizada de uma forma bastante crítica. A leitura do sentimento comunitário tem que ser temperada pela adequação desse sentimento, em primeiro lugar, à ordem de valores jurídico-constitucional, e, em segundo lugar, ao padrão de um homem médio razoavelmente bem formado que o julgador construa para uso próprio.Em muitas situações o julgador terá que precaver-se da influência de certa comunicação social no estado de espírito dos membros da comunidade (e de si próprio), e tantas vezes terá mesmo que configurar o efeito provável que o crime teria na comunidade, se aí tivesse tido conhecimento alargado, nos casos em que isso não ocorreu.

2.3.4. Quanto à prevenção especial, sabe-se como pode ela operar através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa Modificação que se não pode impor, obviamente, mas que se pode e deve proporcionar. Vemos no desiderato legal da “reintegração do agente na sociedade” a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, e da intimidação a nível individual. 2.3.5. A doutrina vem a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias , e a jurisprudência tem maioritariamente aceite, que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica:A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos com atenção às expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.”.Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A prevenção geral negativa ou intimidatória surgirá como consequência de todo este procedimento, e já aflorava, essa sim, ao nível da própria tipificação na lei penal do comportamento.

PRISÃO E ALTERNATIVAS

A partir dos anos setenta do século passado tomou corpo um movimento importante de ceticismo em relação aos efeitos úteis do investimento na reinserção social dos condenados.Sobretudo a partir dos EUA, cuja influência cultural nos entra todos os dias pela casa dentro via TV. Ao mesmo tempo, efetivava-se em muitos Estados americanos uma política criminal de tolerância zero (Mayor de Nova Iorque, Giuliani), em relação à pequena e média criminalidade, e um combate apertado ao tráfico de droga, o que teve por consequências abusos cometidos pelas polícias, discriminações étnicas e sobretudo um aumento sensível da população prisional. Acresce a proliferação das “guidelines” em matéria de “sentencing”. Em 2010 os EUA tinham 2 266 832 reclusos o que corresponde a ¼ da população mundial encarcerada. Se acrescentarmos os cidadãos a contas com a justiça em regime de “parole” ou “probation” chegamos perto de 5 milhões de pessoas. Em 1972 havia 96 reclusos por cem mil habitantes nos EUA. Hoje são 730. Os afro americanos são cerca de 12 a 13% da população e no entanto são 50% dos reclusos. 90% dos delitos de droga são cometidos por afro- americanos e latinos.Um país como a China que tem quatro vezes mais a população dos EUA, conta com 1 640 000 reclusos.Todo este estado de coisas levou à sobrelotação das cadeias lá, mas o fenómeno preocupa também a Europa e é problema entre nós. Assim se questiona cada vez mais a pena de prisão e sobretudo a sua compatibilidade com a reinserção social. Reações possíveis ?O art. 70º do CP diz expressamente que a possibilidade legal da aplicação de pena não privativa de liberdade implica a preferência por esta se assim se assegurarem as necessidades de prevenção. Há uma jurisprudência consolidada no sentido de se evitarem as penas curtas de prisão. E assim se usarão as penas de substituição, com relevo para a suspensão da execução da prisão e o trabalho a favor da comunidade, ou a multa, como pena principal ou substitutiva. A liberdade condicional do art. 61º e seguintes tem um papel importante, e já durante o inquérito o Mº Pº pode optar pela suspensão respetiva com injunções e regras de conduta. Para já não falarmos do direito penitenciário e do que aí importará fazer.Mas, obviamente que tudo isto interessa sobretudo à pequena e média criminalidade.

JUSTIÇA PENAL E OPINIÃO PÚBLICA
A comunidade reage mal ao funcionamento da justiça e da justiça penal em particular. Em primeiro lugar porque reage emocionalmente, em termos de merecimento de pena e não de utilidade de pena. Basta pensar que o limite dos limites que são os 25 anos de cadeia não justificaria tantas críticas se se pensasse que a pena não é retributiva. Depois a justiça penal padece da décalage que existe entre o funcionamento do sistema judiciário e a cultura que nos envolve. A justiça é um serviço que o Estado presta, e, como em relação todos os outros serviços exige-se rapidez. Com a agravante de que, como já Beccaria dizia, mais vale uma pena leve mas pronta do que uma pena pesada aplicada muito tempo depois. A justiça não é célere embora a penal seja até das mais céleres.Estamos habituados a ter precisão na solução dos problemas, mas como os tribunais fazem juris – prudência e não juris – ciência, as pessoas não entendem o casuísmo e as diferenças das decisões.Por isso também ficam insatisfeitas com a falta de previsibilidade, porque esta lhes traz insegurança. Todos aspiramos à certeza matemática, cujo papel, porém, aqui, é diminuto.Finalmente, estamos habituados a legitimar o poder de quem o tem através de outorga democrática de mandatos. A legitimação democrática dos magistrados é só mediata, e tem que ser assim em nome da imparcialidade e independência dos juízes.

Mas tem que ser assim ? Tem.
Importa é explicar. Uma, dez, mil vezes.