NINGUÉM É IRRECUPERÁVEL
(Este artigo foi originalmente publicado na edição de 15/06/2019 do Diário de Notícias na rúbrica Pessoas & Causas.)
Legenda: Foto 1: Duarte Fonseca é um dos fundadores da startup que nasceu em 2015 para ajudar a população prisional. Foto de Diana Quintela / Global Imagens
Foto 2: A APAC Portugal já apoiou cerca de 80 reclusos. Em breve vai lançar o programa Free Works com a implementação de oficinas dentro das cadeias. Foto DR
Quando estudava na universidade no Porto, a sua cidade natal, Duarte Fonseca participou num jogo de futebol entre universitários e reclusos. “Perdemos 2-1, infelizmente”, recorda. Mas o que mais o marcou não foi o resultado, foi um encontro imediato. “No final tínhamos ali uma terceira parte de comes e bebes e conversa e há um que vem ter comigo e diz-me assim: “eu conheço-te”. E eu “pois, a tua cara também não me é estranha”. “Tu não paras ali na zona da Boavista? Eu sou o Bruno” (o nome é falso) e eu “Bruno? Tu já me roubaste”. Isto é verídico, foi uma coisa na escola secundária, havia ali uma rua que de vez em quando era mais complicada e ele já me tinha roubado (risos). E o que me fascinou na altura foi como é que um tipo que na altura roubava 20 cêntimos, uma coisa estúpida de miúdos, só porque era do bairro, de repente a coisa vai evoluindo e não encontra outro caminho na vida. Claro que ele teve culpa, mas não houve oportunidades para ele perceber que aquele não era o caminho que queria levar, porque de certeza que ele não queria ser preso. E isso tocou-me bastante.”
Depois deste encontro, Duarte sempre esteve envolvido em voluntariado, mas só em 2015 esse compromisso ficou mais sério, com o nascimento oficial da APAC Portugal. Nascia assim uma startup que trabalha em meio prisional, cuja ideia remonta a uma conferência em 2009. “Ouvimos um senhor brasileiro falar de uma metodologia, de umas prisões no Brasil sem guardas, que eram cogeridas com as próprias pessoas que estavam presas, a falar de resultados inacreditáveis e que custavam um terço. E na altura aquilo mexeu bastante, mas foi “isto ou é uma grande mentira ou merece ser estudado para se perceber se vale a pena ser implementado em Portugal. E o bichinho foi ficando e a partir de 2015 começámos a trabalhar mais à séria.”
Parte desse trabalhou passou antes por um “estágio” numa dessas prisões no Brasil. “Vivemos uma semana – eu e a Teresa Cardoso, que também é cofundadora – dentro de uma prisão brasileira, que nessa semana virou mista. Saímos de lá completamente transformados, porque quando são dadas responsabilidades às pessoas, elas querem ser dignas dessa responsabilidade, dessa confiança e lá tudo é feito com eles e por eles e, portanto, essa mudança acontece pelo caminho.”
Por cá o projeto não tem o objetivo de tornar as prisões geridas pelos reclusos e sem guardas. Apesar de o objetivo parecer mais modesto, é inovador. A APAC Portugal propõe-se a ajudar quem está preso a tomar decisões dentro e fora da cadeia. Além disso, propõe às empresas que façam alguma da sua produção dentro das cadeias, dando assim trabalho aos reclusos, e depois os ajudem na transição para a vida em liberdade.
“Enquanto seres humanos tomamos 7500 a dez mil decisões por dia e nós enquanto sociedade esperamos que, quando estas pessoas saiam da prisão, sejam capazes de tomar boas decisões. Mas elas não são treinadas ou não se treinam a elas próprias a tomar decisões, porque tudo nas prisões está definido. Eles não podem decidir”, salienta Duarte Fonseca. A solução é alterar o paradigma, “de rotina, de cogestão com eles próprios do seu próprio processo de vida”.
Emprego lá dentro
Para já, os voluntários e os projetos da APAC Portugal estão em duas prisões em Lisboa com o programa DMais e em Alcoentre com todos os outros programas (EtiPAC, RHI e Labora). Em breve será iniciado em Caxias o programa ligado às empresas e às oficinas no meio prisional – o Free Works. Falta ainda definir, por enquanto, as empresas que vão lançar as oficinas.
O primeiro passo de aproximação das empresas aos reclusos passa pela instalação de oficinas dentro das prisões. O programa Free Works tem exatamente esta componente de “ajudar empresas com processos produtivos ou sequenciais a poderem criar oficinas de trabalho, pequenas fábricas dentro de prisões”. Outra parte deste programa consiste no apoio aos reclusos na procura e manutenção de um emprego, uma vez em liberdade.
O empreendedor de 30 anos não tem dúvidas de que não é difícil encontrar empresas para a instalação de oficinas nas prisões, onde, aponta, existe “espaço, infraestruturas, massa humana e talento”.
Duarte Fonseca admite que, desde que a “aproximação seja gradual”, a aceitação das empresas é grande. Além disso, o facto de estar incluído na Casa do Impacto, incubadora de startups da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, facilita o acesso a empresas. A APAC Portugal foi das primeiras startups a instalar-se no espaço de cowork da Casa do Impacto, ganhando acesso mais fácil a financiamento e programas de aceleração para lançar a associação, sob a chancela da Santa Casa, o que credibiliza a associação, sublinha o seu cofundador.
A prová-lo estão também os números. Quando a APAC Portugal nasceu em 2015, eram sete pessoas, hoje são mais de 30. A que se juntam mais de 70 candidaturas nos últimos seis meses para fazerem parte da associação em diversas vertentes. Com colaboradores que vão dos 25 aos 65 anos – entre os que fazem voluntariado dentro das prisões e os que trabalham no exterior para organizar eventos e tratar de todas as burocracias inerentes ao trabalho do dia a dia da startup.
Preparar a vida cá fora para não voltarem
Ainda dentro da prisão, a APAC Portugal trabalha com os reclusos para prepará-los para o dia em que saírem em liberdade – e todos os dias seguintes. Equipas de voluntários ajudam quem está preso a desenvolver competências como gerar empatia, saber falar em público, gerir conflitos ou até coisas mais simples, como preparar uma entrevista de emprego. Um trabalho que segue cá fora com a sensibilização de empresas e junto das famílias.
Voluntários trabalham junto dos reclusos no apoio à vida autónoma. Partilham estratégias de gestão de conflitos, de empatia ou até como ir a uma entrevista de trabalho.© DR
Duarte e toda a equipa da APAC Portugal acreditam – e o seu trabalho prova isso, garantem, já que apresentam menos de 20% de reincidência entre os reclusos com quem trabalham, o que compara com 75% no total da população prisional – que uma vez em liberdade, ninguém quer regressar à prisão. No entanto, manter esse objetivo nem sempre é fácil, por falta de sensibilização da sociedade, que não deixa cair o rótulo de ex-reclusos. “Levam com um carimbo para o resto da vida que é uma dupla pena e ainda por cima perpétua”, lamenta Duarte Fonseca, que acredita ser necessário que esta seja também uma causa pública para que se vença o estigma e a reinserção aconteça.
Até que isso seja uma realidade, a APAC Portugal vai continuar a usar a sua principal arma: o amor. “Quando se fazem as coisas com amor – e daí o voluntariado, a relação de gratuitidade -, a transformação acontece, porque a pessoa de repente sente-se digna, encontrou a sua dignidade, a sua identidade outra vez. É através desse tipo de ferramentas que trabalhamos: o mérito, o amor, a confiança, a valorização da pessoa tal qual é e não pelo que fez, porque todo o homem é maior que o seu erro.” Até porque acreditam nas palavras do senhor brasileiro (Mário Ottoboni, o fundador da APAC no Brasil) que ouviram ainda estudantes na conferência em 2009: “Ninguém é irrecuperável”.
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